Livros e Publicações

Drª Lígia Diniz – Membro funDador da associação de arteterapia do Rio de Janeiro

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ARTE TERAPIA NA EMPRESA 
JORNADA ATRAVES DAS CORES 

 

RESUMO:

Reportamos neste artigo uma aplicação bem sucedida do processo arte terapêutico a nível empresarial. Uma vivencia através do uso das cores, com a finalidade de facilitar aos participantes um encontro físico e psíquico consigo mesmo, foi aplicado a uma empresa durante uma semana dedicada à saúde integral de seus funcionários. Foram atendidas cerca de 2000 pessoas que depuseram positivamente, mostrando que é possível levar a arteterapia, com toda a subjetividade envolvida, a um local de caráter patriarcal e racional.

ABSTRACT:

In this paper we report a successful application of the art therapeutic process at an institutional level. An experiment employing colors was performed aiming to facilitate the participants to a physical and a psychological encounter with themselves. The experiment was done during a week involving about 2000 employees. The participants testified the effectiveness of art therapy, a technique that relies on sensibility, being performed in a patriarchal and rational place.

INTRODUÇÃO

A empresa contratante do projeto realiza periodicamente atividades intelectuais, didáticas, para seus funcionários. Decidida a inovar, a nova proposta da empresa foi fazer, este ano, uma exposição sensorial em uma semana dedicada a saúde dos funcionários, de um ponto de vista integrado, visando mais o sentir que o racional. Propusemos então um trabalho de arteterapia enfocando as cores, pois estas despertam emoções características, como descritas a seguir.

Significado das cores como elementos provocadores de emoções

As cores do espectro solar nas quais estamos interessados são o vermelho, laranja, amarelo, verde, azul claro e azul índigo, lilás ou violeta.
O vermelho, o laranja e o amarelo são cores quentes, despertam mais ações, mais extroversão, são consideradas cores “yang”. O verde, o azul e o lilás são cores frias, despertam mais calma, introversão e transcendência. Estas cores podem ser associadas aos sete chacras de energia do corpo humano. Os chacras são centros de força vital a diferentes níveis de experiência no sistema humano.
O vermelho evoca ação e paixão; é uma cor quente, evoca o calor e a intensidade, é a cor do fogo e do sangue, é o princípio da vida, é a cor guerreira. O vermelho também desperta o estado de alerta, seduz, encoraja e provoca; é associado ao chacra basal, situado na região genital e na base da coluna vertebral. Relaciona-se à posturas de solidez, “pés na terra”, vida.
O laranja evoca alegria, energia, auto-afirmação. Tem uma energia mais elaborada, temperada, em relação ao vermelho. É a cor do por do Sol e é associada ao chacra do abdômen. Este chacra está ligado à fluidez, alegria, energia.
O amarelo é a cor do Sol e a cor do ouro. Evoca luz, calor, riqueza, riqueza de espírito, caráter luminoso, sabedoria, reflexão, discernimento, o poder da palavra e é associada ao chacra do plexo solar ligado à expansão, luz, clareza, poder.
O verde é uma cor tranqüilizadora, refrescante. É a cor do reino vegetal, da natureza, com seu odor revigorante. Esta cor simboliza o princípio do crescimento natural e saudável e a capacidade de nutrir os seres vivos. Evoca passividade e imobilidade, é a cor da esperança e da longevidade, das águas dos lagos, do mar, é a cor das plantas medicinais. O verde é a própria mãe natureza, sugere germinação e renovação, reflete a capacidade de nutrir, cuidar e proteger, sendo a cor da cura. Esta cor é associada ao chacra cardíaco que está ligado ao coração, relação, troca, sentimento.
O azul é a cor do céu, do ar. Evoca leveza, elevação, exprime a calma, doçura, repouso e a contemplação, tranqüilidade e paz. O azul faz lembrar o céu límpido, evoca pureza e perfeição moral. É o símbolo da sabedoria divina e da sabedoria transcendente e também leva à divagação. O azul mais escuro leva ao sonho, sugere desapego, e leva a alma em direção à totalidade. O azul claro é associado ao chacra da garganta e azul escuro ao chacra frontal (terceiro olho).
O lilás, cor da temperança, é a cor do equilíbrio entre a terra e o céu, entre os sentidos e o espírito, ente o amor e a sabedoria. Cor da espiritualidade e da transcendência, cor do mistério da passagem, da transformação, evoca a evolução pessoal, a busca da totalidade. O lilás é associado ao chacra coronário, localizado no topo da cabeça.
O branco é a união de todas as cores representando a totalidade, o cosmos, o infinito.

OBJETIVO DO TRABALHO

O trabalho Arteterapia na Empresa – Jornada das Cores tem por objetivo facilitar aos participantes um encontro físico e psíquico consigo mesmo, através de vivências baseadas nas cores, visando contribuir para a busca de sua saúde integral.

METODOLOGIA

A metodologia utilizada neste trabalho foi a da Arteterapia, em particular sua abordagem das cores. A Arteterapia é capaz de abrir novos canais de comunicação que facilitam o acesso ao inconsciente por intermédio de múltiplas formas de expressão. Diferente de outras técnicas psicológicas, a Arteterapia privilegia aspectos sensoriais, o que a torna adequada a um evento que visa a melhoria da qualidade de vida e da saúde integral dos participantes.
Realizou-se uma jornada pelas cores do espectro solar iniciando pelo vermelho, passando pelo laranja, amarelo, verde, azul claro e escuro, lilás, terminando no branco. Cada cor possibilita despertar determinadas emoções e passar por cada uma delas representa um desafio interior. A vivência das cores deu-se em uma sucessão de ambientes monocromáticos. Cada cor, que atua como um elemento facilitador de contato com as emoções do sujeito, representa, através de seus atributos psicofísicos, um desafio ao nível da subjetividade. Desta forma, neste experimento, os participantes puderam entrar em contato e enfrentar seus medos, suas vergonhas, seus desconhecimentos ansiogênicos.
Os vários ambientes coloridos a serem percorridos foram decorados por elementos também relacionados a esta cor. O contato com os ambientes foi realizado sensorialmente, através dos sentidos, vendo, cheirando, ouvindo e tocando, despertando nas pessoas a energia que cada cor é capaz de suscitar.
As emoções despertadas abrangeram das mais instintivas às mais espirituais, propiciando aos participantes uma conexão com seus aspectos físicos e psíquicos, auxiliando-os em sua busca de saúde integral.

DINÂMICA DA JORNADA

Na entrada, pequenos grupos de seis pessoas foram convidados, por um arteterapeuta vestido de preto, a fazerem uma jornada através das cores. Foi explicado a estas pessoas que elas iriam passar por vários ambientes, cada um representando uma cor, e que elas teriam a oportunidade de vivenciar sensorialmente cada uma delas. Foi sugerido aos participantes que se permitissem sentir a emoção que cada cor lhes traria.

O primeiro ambiente: vermelho

Este ambiente continha imagens de guerreiros de várias épocas e luzes no chão lembrando fogo.
Um arteterapeuta vestido de vermelho recebeu as pessoas que entraram neste ambiente, ajudando-as a entrar em contato com esta cor dizendo: “vocês estão entrando no mundo do vermelho; o vermelho é a cor do sangue, do fogo, é o princípio da vida, é a cor guerreira, a cor que encoraja. Vamos entrar em contato com esta energia do vermelho dentro de nós, sentindo o guerreiro que existe dentro de cada um, o pulsar do nosso sangue. Entrar em contato com nosso guerreiro é conectar com nossa capacidade de ir à luta para buscar o que precisamos, é a nossa capacidade de lutar pela sobrevivência.”.

Logo após o arteterapeuta convidou o grupo a dar as mãos e fazer uma roda tribal, batendo com os pés no chão, lembrando nossos ancestrais que, antes de sair para a caça ou para a luta, faziam uma roda para despertar o seu espírito guerreiro interno. A nossa caça agora é outra, a nossa luta é outra, mas é a mesma energia, o guerreiro interno, o herói que nasceu. O arteterapeuta lembra que todos são da mesma tribo, que estamos lutando juntos.
Além de sentir com o corpo essa energia do vermelho, as pessoas estiveram vendo imagens que despertam essa energia, escutando um som de pulsar de coração, sentindo texturas no chão e no ambiente, de forma a perceber a energia que o vermelho desperta com todo o seu sistema sensório-motor.
O arteterapeuta explicou, “Sempre que vocês precisarem desta fôrça para ir à luta, para buscar algo que necessitem, vocês podem ativar essa energia, este guerreiro interno que vocês tem. Não é necessário ficar armado o tempo todo, pois vocês sabem que quando precisarem basta evocar a energia de seu guerreiro interno que ela vem”.
Neste momento o grupo foi convidado a passar para o próximo ambiente.

O segundo ambiente: laranja

Este ambiente tem imagens de atletas, de movimento.
Um arteterapeuta vestido de laranja recebeu as pessoas que entraram neste ambiente ajudando-as a entrar em contato com esta cor, com as seguintes palavras: ”vocês estão entrando no território do laranja. O laranja é a cor que evoca a nossa energia vital, a alegria, o movimento, o prazer de viver, a saúde. Vamos entrar em contato com essa energia do laranja dentro de nós, nos conectando com nossa vitalidade, com nossa alegria, com nossa força vital”.
O arteterapeuta sugere nesse momento que as pessoas comecem a soltar seu corpo, soltando os pés, joelho, pernas, quadris, tronco, braços, pescoço, cabeça, até que todo o corpo fique solto e se movendo, sentindo a energia circular por todo corpo. Rindo junto com o grupo, sentindo o prazer de liberar essa energia. As pessoas podem emitir sons e a admirar o ambiente que também sugere essa mesma energia.
Ao final, o arteterapeuta diz: “sempre que vocês estiverem deprimidos, sem vitalidade, sem vontade, ativem o seu laranja, a sua vitalidade, a sua vontade de viver, pois vocês têm essa energia dentro de vocês”.
A seguir o grupo passa para o próximo ambiente.

O terceiro ambiente: amarelo

Este ambiente tem imagens do sol, de girassol, elementos que sugerem luz, clareza.
Um arteterapeuta vestido de amarelo recebeu as pessoas que entraram neste ambiente ajudando-as a entrar em contato com esta cor, com as seguintes palavras: “vocês estão entrando no território do amarelo. O amarelo é a cor do Sol, é a cor do ouro, evoca luz, calor, riqueza, é a cor do rei, da riqueza de espírito, sabedoria, reflexão, administração, discernimento, traçar metas, o poder da palavra. Vamos entrar em contato com o amarelo dentro de nós, com a nossa capacidade de reflexão, de administrar nossa vida, nossa saúde,, buscar nossa sabedoria para traçar metas para viver melhor; saber administrar em conjunto.”
Para isso o terapeuta convida as pessoas a escrever ou desenhar metas e refletir sobre o que estão precisando ativar nas suas vidas.
O arteterapeuta diz, ao final: “quando vocês estiverem confusos, com dificuldade de traçar metas, de discernir, de administrar suas vidas, lembrem-se do amarelo que existe em vocês, do rei interno, do poder que existe em vocês”.
O grupo passa para o próximo ambiente

O quarto ambiente: verde

Este ambiente lembra um grande pulmão da natureza, e é repleto de plantas medicinais.
Um arteterapeuta vestido de verde recebe as pessoas que entraram neste ambiente ajudando-as a entrar em contato com esta cor, com as seguintes palavras: “vocês estão entrando em contato com o verde, a cor da natureza, do reino vegetal, o pulmão de mundo, nós respiramos o verde com odor revigorante, o verde sugere germinação e renovação, reflete a capacidade de nutrir, cuidar e proteger, é a cor da cura e das plantas medicinais. Vamos sentir dentro de cada um este curandeiro interno, essa capacidade de nutrir os outros e se nutrir, vamos sentir este ar que respiramos.”
O arteterapeuta convida o grupo a sentir o cheiro de plantas, de ervas medicinais, e depois vão trocando com os companheiros os raminhos de plantas, experimentando o compartilhar. Convida o grupo a respirar profundamente, enchendo bem os pulmões e depois os esvaziando, sugerindo depois a cada um plantar uma semente, simbolizando o respeito à natureza, contribuindo para a preservação do meio ambiente.
No ambiente verde, além dos odores, ouvem-se sons da natureza.
É lembrado pelo arteterapeuta que, quando se sentirem fracos, desconectados dos outros e da terra, ative seu verde, ou seja, sua capacidade de nutrir, de curar, de respirar, de germinar.
O grupo passa para o próximo ambiente.

O quinto ambiente: azul claro e escuro

Este ambiente tem uma parte representando o céu claro e outra parte o céu escuro com estrelas.
Um arteterapeuta vestido de azul recebe as pessoas que entraram neste ambiente ajudando-as a entrar em contato com esta cor com as seguintes palavras:
“aqui é o reino do azul, a cor do céu, do ar, da leveza, da harmonia, da comunicação harmônica, é o caminho da divagação, exprime a calma, a doçura. O azul escuro é o céu a noite, é o caminho do sonho, da imaginação e da intuição. Vamos entrar em contato com nosso azul, sentindo esta leveza dentro de nós, fluindo harmoniosamente com nosso corpo, pensando nos nossos sonhos .
O arteterapeuta oferece uma estrela cadente para que cada um deixe uma mensagem de um sonho positivo para a coletividade e depois prenda esta estrela no cenário do cosmos. Diz que quando precisarem desta leveza, desta fluidez, desta harmonia, da sua intuição, e da sua capacidade de sonhar, lembrem-se do azul que está dentro de cada um de nos.
O grupo passa para o próximo ambiente.

O sexto ambiente: lilás

Este ambiente tem lanternas lembrando velas e um chão macio para quem quiser sentar ou deitar.
Um arteterapeuta vestido de lilás recebe as pessoas que entraram neste ambiente ajudando-as a entrar em contato com esta cor, dizendo: “o lilás é a cor da temperança, é a cor do equilíbrio entre a terra e o céu, entre os sentidos e o espírito, entre o amor e a sabedoria. É a cor da transcendência, evoca a evolução pessoal, a busca da totalidade. Vamos fechar os olhos e sentir o lilás dentro de nós, o equilíbrio, a nossa conexão com a totalidade. Sentindo o eixo do nosso corpo, vamos ficar alguns segundos neste estado meditativo.” O arteterapeuta sugere que sintam o lilás, sempre que desejarem entrar em contato com este estado meditativo, com seu eixo, conectando seu interior com a totalidade.
O grupo passa para o próximo ambiente.

O sétimo ambiente: branco

Por fim as pessoas chegam ao ambiente branco que contém um disco de Newton. Um arteterapeuta vestido de branco as recebe com afetividade, explicando que o branco é a união de todas as cores, demonstrando isso girando o disco de Newton. Entrega um CD e papéis coloridos para que elas façam uma mandala das cores levando consigo este símbolo de uma jornada realizada.
Além dessa jornada pelas cores, que ocorreu no hall da empresa, foram realizadas vivências de Biodança e contação de estórias nos jardins. As vivencias enfocaram o trabalho em grupo, o respeito pelo outro, o compartilhar.

CONCLUSÃO

Esta jornada pelas cores e as vivencias realizadas nos jardins, levaram os participantes a experimentar emoções das mais básicas as mais complexas.
Constatamos que esta experiência sensorial despertou nas pessoas a importância de se olhar, de se cuidar, de olhar o outro e compartilhar com o outro e perceber que ele faz parte de um todo que também precisa ser olhado e ser cuidado. Enfim, tomar consciência de si mesmo, do outro e do Cosmos em busca de uma saúde integral.
O depoimento positivo dos participantes e o convite para repetir a experiência na mesma empresa sugere que a arteterapia é um instrumento eficaz para ser empregado também no meio empresarial, refletindo a necessidade e a carência de contato com a subjetividade nesse universo patriarcal de nossa sociedade.

LIGIA DINIZ

Psicóloga – CRP 1900-RJ

Arteterapeuta

Membro Fundador da Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro

Pós- graduada em Psicologia Junguiana

Membro Trainée do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro

Bacharel em Artes Cênicas

Facilitadora de Cursos de Formação em Arteterapia de Base Junguiana no Rio de Janeiro e em Porto Alegre

Facilitadora de Terapia Corporal em Biodança.

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A GNOSE ATRAVÉS DA ARTE 
REVISTA IMAGENS DA TRANSFORMAÇÃO 
Nº. 5 – VOL. 5 – 1998. 



RESUMO:

Êste artigo apresenta uma técnica terapêutica baseada na confluência de aspectos de Biodança, Arte-terapia e Teatro, empregada com sucesso na busca do auto-conhecimento e evolução daqueles que a experimentam.

ABSTRACT:

This paper presents a new therapeutic method based on aspects of Biodance, Art Therapy and Theatrical Art. The method has been successfully employed by people seeking for self-knowledge and psychological evolution.

“A criação de algo novo não é realizado pelo intelecto, mas pelo instinto de diversão que age a partir da necessidade interior. A mente criativa brinca com os objetos que ama.”

C. G. Jung

Desde tempos imemoriais constata-se que as artes, os mitos, as religiões e a literatura sempre expressaram as mais profundas experiências humanas. Trilhar estes caminhos pode levar o ser humano, através do seu auto-conhecimento a vivenciar o numinoso, o espaço do sagrado, do transcendente.

Neste trabalho farei um relato de minha experiência psicoterapêutica obtida através da integração de artes e técnicas psicológicas. Mostrarei como pode ser útil a associação entre a Biodança, a arte plástica e a arte cênica para facilitar e conduzir as pessoas no caminho do auto-conhecimento. Não se trata aqui de produzir arte pela arte, ou mesmo de buscar a estética através da arte. Trata-se de utilizar a integração de técnicas e artes para buscar a via da gnose.

A Gnose é a busca da nossa verdadeira origem, de quem somos de fato, a despeito de todas as máscaras ou personas que o coletivo nos imponha. A Gnose é a busca do Si-mesmo. Não é só a soma de nossos personagens, é um todo integral muito mais consistente. A Gnose é a busca do divino dentro de nós.

A Biodança é um sistema de integração afetiva, renovação orgânica e reaprendizagem das funções originárias da vida que visa ao desenvolvimento das potencialidades humanas, integra corpo e mente e harmoniza o indivíduo como um todo. Criada pelo antropólogo Rolando Toro em 1964 e introduzida no Brasil em 1976, é uma técnica não verbal baseada em vivências induzidas pela música, dança e exercícios de comunicação em grupo. A Biodança compõe-se de cinco linhas de vivências básicas, vinculadas à vitalidade (auto-regulação), sexualidade (prazer), criatividade (expressão), afetividade (amor) e transcendência (impulso de fusão com a totalidade cósmica) [1,2].

A Arte-terapia [3], embora originada de uma atividade milenar, é de aparecimento recente como instrumento de terapia. Data de aproximadamente 50 anos e não há ainda um campo unificado de conceituação, a respeito de sua ação terapêutica. O termo “arte-terapia” inclui [4] “qualquer tratamento psicoterapêutico que utiliza como mediação a expressão artística – dança, música, teatro, representação plástica : pintura, desenho, gravura, modelagem, máscaras, marionetes…”

A arte é um instrumento essencial para o desenvolvimento humano, daí seu efeito terapêutico. Ao atribuir funções terapêuticas à arte, deixa-se de privilegiar aspectos estéticos. O que importa é auxiliar os indivíduos a lidar melhor com seus conteúdos internos, estabelecer seu equilíbrio emocional, encontrar sua própria linguagem expressiva e exorcizar seus “demônios” (imagens e criações associadas a situações conflitivas ou traumáticas). Estas imagens se despotencializarão ao serem concretizadas em produções artísticas. Segundo o genial renascentista Leonardo da Vinci “é necessário desenhar os monstros para podê-los dominar”.

A utilização de materiais variados facilita a entrada em contato com conteudos inconcientes e experiências ainda da fase pré-verbal ou mesmo mais primitivas ou coletivas, de modo a permitir a elaboração, mesmo que o acesso se dê a nível do verbal.

A arte-terapia, no sentido mais comum, é comprendida apenas como o uso terapêutico das artes plásticas; neste trabalho, vamos entendê-la como o conjunto das técnicas artísticas que possam facilitar o auto-conhecimento, integrando as artes cênicas; a teatro-terapia será enfatizada por ser foco de minha experiência bem sucedida e também por haver sido pouco abordada no processo arte-terapêutico.

O uso do teatro no trabalho terapêutico possibilita que o sujeito se observe a si mesmo em ação, em atividade [5]. O autoconhecimento assim adquirido permite-lhe ser aquele que observa e aquele que age. O teatro na psicoterapia pode ser usado de três formas: a) o protagonista-cliente vai adquirir conhecimento sobre si mesmo revivendo uma emoção, tornando-se consciente de sua emoção e sua ação, transformando esta energia (ab-reação). Segundo Boal “o eu agora percebe o eu antes e prenuncia um eu possivel , um eu futuro ”; b) aqui o cliente é o diretor teatral: dirige os companheiros de grupo encenando cenas conflituosas de sua vida, assistindo e podendo transformá-las segundo seu desejo; c) o ator-cliente viverá personagens desconhecidos dele mesmo, tomando consciência de suas possibilidades, de seus conteúdos, ou seja, dos inúmeros personagens que povoam seu inconsciente, trazendo-os à cena quando necessário, sem reprimi-los e sem deixar-se possuir por eles. Seus personagens vêm a tona de uma forma prazerosa e artística, num movimento de dentro para fora.

Utilizo a Biodança para integrar o grupo, para criar um ambiente protetor, de intimidade, onde as vivências possam acontecer. Acredito que as imagens arquetípicas sejam ativadas neste processo e que possamos acessar o inconsciente, pessoal e o coletivo, com algum êxito. Em linguagem figurada, “abrimos os canais” desta forma. A Biodança, dependendo da música e do movimento selecionado vai facilitar o aparecimento de determinadas emoções potencializando o afloramento de complexos e suas figuras arquetípicas correspondentes. Na prática, por exemplo, músicas mais sensuais associadas a movimentos pélvicos facilitará o afloramento do potencial de sedução, de erotismo, da nossa “Afrodite”. Naturalmente, para ativar nosso lado guerreiro, utilizaremos músicas mais fortes, com vitalidade e movimentos ativos, mais “Yang”. Como outro exemplo, músicas mais intimistas associadas a ações de proteção, de colo, potencializam o contato com a nossa criança, propiciando um estado mais regressivo, mais “Yin”.

A Biodança produz estados de semi-transe durante os quais pode-se suspender temporariamente nosso censor interno, permitindo assim a liberação das emoções e vivências. As imagens que surgem, nestes estados, através de desenho, pintura, modelagem ou colagem, estarão mais despojadas de crítica e menos susceptiveis a bloqueios. Desta forma, conteúdos inconscientes afloram ao consciente; não só os conflitos vão se desfazendo, como nossas riquezas internas desconhecidas começam a aparecer, bem como nossos outros “eus”. Rituais de teatralização são então utilizados para dar corpo a estes novos personagens; o personagem que precisar ser mais enfatizado poderá ganhar roupagens e atuações mais completas para que possa ser vivenciado em toda a sua extensão. Assim, dançando, representando plasticamente, representando teatralmente seus personagens, o indivíduo pode assimilá-los naturalmente, visceralmente, emocionalmente, em um movimento de dentro para fora.

Ë importante não identificar o personagem com o ator, ou seja, desidentificar o ego das figuras do inconsciente, sejam elas tenebrosas ou prazerosas. Então, ritualisticamente, vai se tirando as roupagens, as máscaras, vai se tirando o personagem e vai se voltando ao nosso eu, agora com a consciência e o conhecimento de que não somos apenas o nosso ego (eu) mas todos os outros eus inconscientes que existem dentro de nós. As vivências podem surgir de forma não diretiva ou podem ser induzidas através da apresentação de um mito que se relacione com os conteúdos inconscientes que estão sendo trabalhados.

O verbal tem sido em nossa sociedade extremamente privilegiado, como se detivesse primazia sobre as demais formas de expressão. Existem muitas outras formas de expressão que, se associadas ao verbal, levarão o sujeito a exprimir com muito mais propriedade seus sentimentos e formas de estar no mundo, o que, na certa, repercutirá no seu bem estar. A arte-terapia possibilita ao sujeito esse contato com outras formas de expressão.

A capacidade de criar está intimamente ligada a espontaneidade, ao deixar fluir coisas das quais nem se tem consciência. A crítica exacerbada não permite simplesmente tentar, assim como o medo do desconhecido faz com que o sujeito se confine num mínimo território conhecido e reduza suas possibilidades de expansão. Permitir-se experimentar o novo é condição fundamental para se entrar em contato com suas potencialidades; permitir-se trazer a tona coisas desconhecidas, mesmo incômodas, faz parte do processo arte-terapêutico de se conhecer e crescer.

Os métodos tradicionais de psicoterapia, essencialmente verbais, propõem que a conscientização dos conflitos tenha um importante valoterapêutico. Hoje sabemos que isto não é efetivo. Existem milhares de pessoas que conhecem com perfeição a origem de suas angústias e a dinâmica de seus conflitos, mas todavia, são incapazes de superar na prática seus estados patológicos. Isto porque as terapias cognitivas trabalham a nivel verbal com significados, baseiam sua ação na vertente que vai desde o córtex à região límbica e hipotalâmica, ou seja, desde os significados às vivências. A arte e a Biodança trabalham a partir das vivências; ao contrário das terapias cognitivas, o sentido vai das vivências aos significados, trabalhando assim com os três níveis de aprendizado: cognitivo, vivencial e visceral. Daí sua efetividade terapêutica, produzindo na prática mudanças emocionais, neurovegetativas e endócrinas.

As terapias tradicionais, verbais, não promovem as verdadeiras transformações, pois só conhecer não é suficiente. Vivenciados através da arte e da Biodança, os conteúdos do inconsciente vêm à tona e se integram ao eu. É só quando o movimento vem de dentro para fora que poderemos estar diante de uma real transformação. Desta forma, o paciente é levado a recuperar a sua intuição e potencialidade artística, é auxiliado a mergulhar no seu próprio inconsciente para dele retirar a matéria prima de seu auto-conhecimento.

As pessoas passam a se conhecer melhor durante a vivência dessas técnicas. O contato com as figuras a princípio assustadoras do inconciente leva a um exorcismo daquele potencial ameaçador que está nas trevas, trazendo-o à luz do consciente e ampliando sua dimensão humana.

Desta forma a pessoa enriquece seu ego com conteúdos que de outra maneira ficariam perdidos, continuariam a ser fantasmas assustadores; é o ego a única instância capaz de testemunhar os dramas que se passam nas camadas mais profundas da mente. Traz-se à consciência não só conflitos, mas riquezas, possibilidades, uma infinidade de personagens que temos dentro de nós. A possibilidade de reconhecer seus personagens, de poder atuar de várias formas sem se identificar com nenhuma em especial, é parte importante desta técnica terapêutica. Ë preciso integrar essas imagens, integrar seu eu fora com seu eu dentro; negociar esse coletivo dentro e fora.

A Gnose intelectual não atinge sua totalidade, não basta conhecer, é preciso ser. A Gnose pela arte incorpora a ação que em si a arte propõe, um auto-conhecimento, buscando uma auto-transformação que leve a uma auto-transcendência. De tal sorte que a pessoa, verticalizando-se, possa atingir oitavas superiores de si mesma.

Ligia Diniz,

Psicóloga CRP 02583583-6 / RJ, Bacharel em Artes Cênicas, Arteterapeuta, Facilitadora de Biodança, Analista Transacional

Referências

•  Toro, Rolando – Coletânea de Textos, editora ALAB, volumes I e II, (1991).

•  Diniz, Lígia – Biodança em Família, monografia para Titulação em Biodança, 1994.

•  Philippini, Angela – Apostila de Arteterapia, 1989.

•  Païn, Sara e Jarreau, Gladys – Teoria e técnica da arte-terapia, editora Artes Médicas Sul Ltda. 1994.

•  Boal, Augusto – O arco-íris do desejo: o método Boal de teatro e terapia, editora Civilização Brasileira 1996.

LEILA DINIZ: UM FEMININO QUE SE REALIZOU 
REVISTA IMAGENS DA TRANSFORMAÇÃO 
Nº 6 – VOL. 6 – 1999. 



RESUMO:

Este artigo tem como objetivo mostrar o trajeto de uma mulher que constelou pioneiramente em seu contexto cultural a versão feminina do arquétipo do herói: minha irmã, Leila Diniz.

Comparo sua trajetória com a trajetória do herói, mostrando que Leila alcança, em sua breve passagem aqui nesta vida, a plenitude do seu ser, e se transforma em símbolo de mulher revolucionária, se tornando um mito nacional.

ABSTRACT:

This article has the objective of showing the journey of a woman who stood out in a pioneering manner from her cultural context, as a feminin version of the archetypal hero: my sister, Leila Diniz. I compare my sister’s journey to the hero’s journey, showing how Leila attained the plenitude of her being in her brief passage through this life, and thereafter became a symbol of the revolutionary woman , became a national legend.

“Sou uma pessoa livre e em paz com o mundo. Conquistei a minha liberdade a duras penas, rompendo com as convenções que tolhiam os meus passos. Por isso, fui muitas vezes censurada, mas nunca vacilei, sempre fui em frente. Tudo que fiz me garantiu a paz e a tranquilidade que tenho hoje. Sou Leila Diniz” (texto do diário de Leila).

 

LEILA DINIZ :

O FEMININO QUE SE REALIZOU

Leila, minha irmã, é filha do primeiro casamento do meu pai. Quando ela nasceu este casamento já estava falido. Ela foi gerada e parida em um casamento em crise , num contexto de dúvidas, tristezas e depressão. Sua mãe, ciente da separação que se aproximava, vinha se deprimindo e definhando. Quando Leila tinha sete meses de idade meu pai separou-se da mãe dela, e esta, fragilizada com todo este processo, ficou doente e acaba por ser internada, sem conseguir desempenhar seu papel de mãe.

Meu pai ficou com os filhos; assim, Leila aos sete meses é separada da mãe. Os filhos mais velhos foram colocados em um colégio interno. Leila, ainda bebê é entregue aos cuidados da avó paterna, que representa, assim, o papel de sua segunda mãe.

Meu pai era comunista, sonhava e lutava por um mundo com mais liberdade e mais igualdade. E em uma das reuniões do partido conheceu minha mãe .Foram viver juntos. E os filhos dele também.

Leila então, aos três anos de idade, é separada da mãe-avó , retorna ao lado do pai, recebe sua terceira mãe : a madrasta, que a amou e cuidou dela como filha.

É ocultado de Leila sua verdadeira origem, ela cresce pensando ser filha de minha mãe. Cresce nesta mentira, neste segredo velado.

Aos 15 anos descobre a verdade, revelada por uma tia mais velha, uma velha anciã.

Sai, então, da casa do pai e vai à procura de sua verdadeira mãe. Nesse momento Leila começa um processo de análise, (o que em sua época não era comum), uma busca de auto – conhecimento, um mergulho em si mesma.

Após viver um tempo com amigas, com uma tia e com a mãe real, retorna à casa paterna e assume a singularidade de sua vida: ela tem duas mães – “a que a pariu, e a que a criou “.

Mas Leila não fica muito tempo com nenhuma das mães. Logo vai viver com Domingos de Oliveira, ainda adolescente (17 anos). Começa aí seu percurso como atriz e como mulher adulta, revolucionária, que vai romper com os valores que aprisionavam as mulheres na tradicional sociedade brasileira.

É através da arte, que Leila pode reafirmar publicamente suas idéias e comportamentos de mulher liberada.

Leila cria uma linguagem própria, um comportamento singular.

Mulher bonita, sensual, suave. A encarnação de Afrodite, mas moleca, transgressora, diz palavrão, tem uma liberdade de ir e vir que só os homens tinham.

Ela une comportamento masculino com comportamento totalmente feminino.

É rebelde, mas não é agressiva, é doce.

Leila é amante e é mãe. Ela une sexualidade-prazer e maternidade.

É paradoxal. Livre, seu compromisso era com a liberdade.

Leila teve muitos amores mas não se prendeu a nenhum; “Eu gosto mesmo é de viver de amores”

Leila amava o mar, o mar era seu confidente, era no mar que ela ganhava energia. Leila mergulhava no mar a qualquer hora, à noite, de madrugada, de dia. E saia energizada, nutrida, abastecida. Ficava horas conversando com o mar. E depois nele mergulhava. Como se estivesse se banhando na Grande Mãe. Se o mar estava bravio, ela mergulhava e enfrentava sua fúria, como quem enfrenta seus próprios maremotos, seus próprios medos.

Dizia ela para o mar:

“Brigam Espanha e Holanda

pelos direitos do mar

O mar é das gaivotas

que nele sabem voar.

Brigam Espanha e Holanda

pelos direitos do mar

porque não sabem que o mar

é de quem o sabe o sabe amar”.

Ao ficar grávida, exibe sua barriga, seu corpo de mãe. Com total orgulho por ser mulher, por ser terra, por ser geradora, por ser mãe.

Leila exibe sua maternidade. Exibe a fêmea dando de mamar à cria.

O mar sempre presente, Leila dá o nome de Janaína, rainha do mar, para sua filha.

Como essa mulher pode ser tão linda, sensual, amante e também ser mãe carinhosa, nutridora?

Como essa mulher consegue ser mãe solteira e não ser infeliz, sofredora, “abandonada”?

Como essa mulher consegue ser tão rebelde, tão inovadora e não ser chata, feia, agressiva?

Os “poderosos” ficaram incomodados, não aguentaram, e começaram a perseguir Leila.

Exigiram dela que assinasse um documento comprometendo-se a não mais dizer palavrão em público. Cortaram sua linguagem.

Proibiram a sua imagem na televisão. Cortaram sua expressão.

Os “poderosos” a silenciaram.

Leila vai para longe. A viagem sem volta. Não se despediu, mas permaneceu.

E já que aqui na terra não podia mais se expressar, Leila explode no ar. Se desmaterializa. E como uma grande heroína vira uma constelação no céu. Para que todos possam ver : “Leila, um feminino que se realizou”.


ATIVAÇÃO DO ARQUÉTIPO DO HERÓI EM LEILA

“Herói é alguém que deu a própria vida

por algo maior que ele mesmo.”

Joseph Campbell

Via de regra os heróis tem um nascimento complicado, precedido por muitas dificuldades.

Leila nasce num contexto de crise e separação dos pais, e de depressão e doença da mãe (que não desempenha seu papel de mãe, mesmo depois de ficar boa e sair do hospital).

O herói é geralmente separado do convívio materno, de sua mãe biológica.

Leila é separada de sua mãe aos sete meses de idade.

As vezes ocorre o fenômeno da “dupla mãe”, o herói quase sempre tem uma mãe biológica e uma mãe que o cria.

Leila aos três anos ganha uma nova mãe, na madrasta. E como sua mãe biológica não morreu, passa a ter duas mães, a que a pariu e a que a criou.

A mãe biológica deu nascimento ao corpo de Leila. A mãe adotiva propicia o nascimento da heroína Leila, pois pelo fato desta mãe já ser um feminino transgressor facilitou a ativação do arquétipo do herói.

Na adolescência o futuro herói acaba descobrindo sua origem. Retorna a sua tribo ou a seu reino.

Leila descobre sua verdadeira mãe, através de uma tia mais velha (lembrando a velha sábia) e vai procurá-la.

Leila aos quinze anos sai em busca de si mesma. Tem uma energia forte que a impulsiona para se individuar. Se diferencia de duas mães. E nesse momento começa a trabalhar e a ser independente.

O herói quase sempre rompe com o pai.Leila, aos quinze anos, descobre a verdade sobre sua maternidade e sai da casa paterna. Nesse momento de diferenciação do pai, em que se ultrapassa o arquétipo do pai para se buscar os próprios valores, Leila, cujo pai era um transgressor da consciência coletiva, realiza a “transgressão da transgressão”.

A etapa das aventuras sempre ocorre em algo que simboliza o inconsciente: uma floresta, uma caverna, o mar, etc. O herói, neste momento, parte para um encontro consigo mesmo, um mergulho da libido dentro de si mesmo.

Leila mergulhava no mar como quem mergulha nas profundezas do seu ser.

Neste período que se afasta da casa paterna vai fazer análise, realizando um mergulho, uma busca de si mesma. Enfrentando sua sombra, subjugando e assimilando sua sombra , e dela retirando sua força. “ Tem-se que brigar com o passado, ou melhor, estudá-lo. Arrancar de dentro da gente as raízes burguesas e mesquinhas, as tradições, o comodismo e a proteção…( texto do diário de Leila)

O herói passa por ritos iniciáticos, ritos de passagem, como a penetração em um labirinto, passagem pelo fogo, mergulho ritual no mar.

Leila mergulhava ritualisticamente no mar, mesmo quando este estava violento. Ela mesma se impunha esta prova, este desafio. Além dos desafios sociais na área da sexualidade, maternidade e na sua linguagem.

A criança, o futuro herói, já vem ao mundo com duas “virtudes” inerentes a sua condição e natureza: a timé (honorabilidade pessoal) e a areté (excelência, superioridade em relação aos outros mortais). A areté leva-o facilmente a transgredir os limites impostos pelo métron .

Leila transgrediu a moral vigente na época. Aos dezessete anos ela iniciou a afirmação de sua individualidade, enfrentando a ordem vigente e trazendo novos valores. Foi transgressora de um feminino oprimido. “Não sei se foi loucura ou coragem minha, mas sempre me expus muito. De certa forma, acho que é isso que ainda sustenta essa coisa engraçada chamada mito.” (texto do diário de Leila).

O herói traz de volta (ou devolve) à consciência os tesouros do inconsciente, os valores inconscientes que fora buscar, afim de que todos possam usufruir das energias e dos benefícios outorgados pelas suas façanhas. Você é herói ou heroina à medida em que emprenda a grande viagem interior, resgatando através da katábasis os conteúdos inconscientes que anunciam uma nova era, promovendo uma passagem de nivel da consciência coletiva. O herói, assim, ajuda e outorga dádivas inesquecíveis a seus irmãos.

O tesouro que Leila traz é a liberação do feminino. Ela resgata o feminino oprimido, transgredindo a moral vigente à época e preconizando uma nova era para as mulheres, com sua atitude de vanguarda, implantando novos padrões de mulher, transformações dos papéis femininos na sociedade brasileira, no domínio da sexualidade, conjugalidade e maternidade. “Soltou as mulheres de vinte anos presas no tronco de uma especial escravidão” (Drummond de Andrade).

O herói é perseguido por uns deuses e ajudado por outros.

Leila foi perseguida pela autoridade da época , quase foi presa, não permitiram mais que sua imagem aparecesse, nem que ela dessa entrevistas. Mas foi amada por milhares de pessoas.

O herói acumula atributos contraditórios.

Leila era paradoxal. Tinha uma personalidade contraditória: revolucionária e sensual, corajosa e feminina, guerreira e sexy, crítica e alegre, questionadora e terna, combativa e suave, audaciosa e cativante, inovadora e doce.

O casamento do herói com a princesa, ou da heroína com o príncipe simboliza a união dos opostos, quando ocorre a integração da anima pelo homem e do animus pela mulher; é a conjunção entre o aspecto feminino da alma e do masculino do espírito . Ë o que se conhece como -hieros gamo- o casamento sagrado. Quando , ao invés de projetar num terceiro elemento,essa energia fica ampliada e disponível para a auto-realização individual.

Leila, me parece, que em si mesma realizou o hieros gamo . Ela constituiu em si uma totalidade : o Feminino- mãe, carinhosa, nutridora, sensual ,doce – e o Masculino – transgressora, guerreira, responsável, trabalhadora, independente, heróica.

Ela viveu a plenitude do seu ser.

Após tantas lutas, o fim do herói é comumente trágico. A grande glória lhe será reservada post-mortem. Os heróis se distinguem dos seres humanos pelo fato de continuarem a agir depois da morte.

Leila morre, desaparece em um desastre de avião, longe de sua terra natal. Uma morte trágica e precoce aos vinte e sete anos. E ao mesmo tempo mágica. Explode no ar. E assim como Calisto, Órion e Quíron, se transforma em estrela, em constelação. E como todos os heróis, presta serviços em vida e post-mortem. Continua a agir depois da morte. Pois basta ver as grávidas na praia, de barriga de fora, as moças podendo exercer sua sexualidade sem repressão para se sentir que Leila permaneceu, que deixou seu tesouro para a coletividade.

LIGIA DINIZ

Psicóloga-CRP 1900-RJ

Arteterapeuta

Bacharel em Artes Cênicas

Pós- graduada em Psicologia Junguiana

Facilitadora de Biodança

Referências:

Brandão, Junito de Souza. Mitologia Grega vol. III, Petrópolis, Ed. Vozes 1987.

Campbell, Joseph. O Poder do Mito, São Paulo, Ed. Palas Athena 1990.

Campbell, Joseph. O Herói de Mil Faces, São Paulo, Ed. Cultrix 1990.

Henderson, Joseph. “Os Mitos Antigos e o Homem Moderno”, in: Jung et allii, O Homem e Seus Símbolos. Rio de janeiro, Ed. Nova Fronteira 1964.

ARTE-TERAPIA E ALQUIMIA 
REVISTA IMAGENS DA TRANSFORMAÇÃO 
Nº. 7 – VOL. 7 – 2000. 



RESUMO:

O objetivo deste trabalho é traçar um paralelo entre a Arte-Terapia e a Alquimia, mostrando que ambas retratam a individuação, a transformação a partir da prima matéria, tendo a obra como mediadora.

Trata-se da visualização de conteúdos inconscientes que vão sendo projetados e transformados através dos mais diversos canais expressivos.

 

ABSTRACT:

“O artista não é uma pessoa de livre arbítrio que persegue seus objetivos, mas alguém que permite à Arte realizar seus propósitos através dele. Como ser humano, ele pode ter humores, desejos e metas próprias, mas como Artista ele é “homem” num sentido mais sublime ele é um homem coletivo – alguém que carrega e molda a vida psíquica inconsciente da humanidade”

Carl Gustav Jung

 

 

ALQUIMIA E INDIVIDUAÇÃO

A palavra Alquimia, em árabe Ul-Khemi é “ a química da Natureza ” .

Esta teve seus primeiros registros no século I A.C, seus caminhos diversificaram-se e misturaram-se a outras formas de saber e religiões. Ela desenvolveu-se por um período de quinze séculos. Seu saber acabou por dar origem à química, influenciando a física, as correntes religiosas, filosóficas e literárias .

Esta procurava “ elevar a consciência individual até a identidade da mente universal, e através da união com a mitologia – única religião de todos os povos – alcançar o autoconhecimento ” .

Trata-se da arte da transmutação dos metais com vistas à obtenção do ouro. Mas esta é uma operação simbólica. “ O ouro é a imortalidade . E é essa justamente a tendência da única transmutação real: a da individualidade humana ” .

Jung descobriu que a psicologia analítica coincidia de modo singular com a alquimia “ … todo o procedimento alquímico … pode muito bem representar o processo de individuação … ” .

Assim, descreve o processo de individuação como “ um processo de diferenciação que tem como meta o desenvolvimento da personalidade individual ” . Significa, portanto, “… tornar-se um ser único, na medida em que por individualidade entendemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo´ .

O processo de individuação é intrínseco ao ser humano, ou seja, tem uma “ existência inconsciente ” à priori. Vincula-se à “ separação, diferenciação, ao reconhecimento do que é nosso e do que não é nosso ” e refere-se à integração dos conteúdos que emergem do inconsciente.

As imagens alquímicas descrevem o processo da psicoterapia profunda. Opus alquímico e processo de individuação são fenômenos idênticos. O grande trabalho descrito pelos alquimistas correspondia exatamente ao processo de individuação que Jung desvendara na profundeza do inconsciente. Pois,

… O processo de individuação é a versão moderna da transmutação alquímica em que a matéria-prima sem valor era transformada em ouro ou na “pedra filosofal”, o símbolo do tesouro oculto que aparece em tantos contos e lendas. Ora, este tesouro oculto, na verdade, está dentro do homem e cabe a cada um de nós descobri-lo, o que só pode acontecer, segundo Jung, a partir de um diálogo constante entre consciente e inconsciente, sem unilateralidades ou radicalismos .

O esquema básico da alquimia para realizar a “opus”, porém, é simples.

A Alquimia descreve um processo de transformação química realizada em quatro estágios. Esses estágios foram mencionados em Heráclito caracterizados pelas cores: “… melanosis o enegrecimento, leukosis – o embranquecimento, xanthosis – o amarelecimento, e iosis – o enrubescimento … Mais tarde foram reduzidas a três: retirou-se a xanthosis (em seu lugar a viriditas – o verde )” .

O papel da cor tem assim um papel significativo na Alquimia. Associadas a ela, definem-se as fases da Alquimia como a Nigredo, Albedo, Citredo e Rubedo, correspondendo, cada uma, a um dos elementos da natureza Terra, Água, Ar e Fogo .

A Nigredo é um estado inicial, quando a matéria está no estado de massa confusa, do Caos, sempre presente no início como uma qualidade da “prima matéria”. A Nigredo, em sentindo psicológico, corresponde” à escuridão do inconsciente, que encerra em primeira linha a personalidade inferior ou a sombra” . Está ligada a Saturno, e o metal correspondente é o chumbo .

É a fase onde “ os conteúdos psíquicos se separam do aprisionamento no corpo, e se torna conhecida a natureza e o significado do que perfaz a relação ” .

Seguem–se procedimentos de lavagem, solução, separação de elementos que conduzem ao embranquecimento; aí pode dar-se que as múltiplas cores – a “ Cauda Pavonis ” – conduzam à cor branca e una , que contém todas as cores – a “ ommes colores ”. Isso ocorre “… antes da produção do “branco” (albedo) ou do “vermelho” (rubedo) … como quando o pavão abre a roda colorida da cauda ” .

Aí, é atingida a segunda etapa, denominada Albedo. A Albedo “ é a luz que surge após as trevas, a iluminação após o obscurecimento ” , marcando a nova união do corpo e da alma, do macho e da fêmea; é a ressurreição, as núpcias do céu com a terra, aqui a lua rege os fenômenos, é o nascimento da prata filosofal.

Em termos psicológicos o adepto estaria na condição do encontro com o princípio feminino (anima). “ A Albedo é , por assim dizer a aurora; mas só a Rubedo é o nascer do sol ” . E a aurora (áurea hora ou seja, a hora do ouro) “ é a ‘mãe do sol’ (sol = ouro); ela expulsa a noite invernal e todos os maus vapores que infectam o espírito do alquimista… ” .

Mas ainda não é o fim do processo, visto que “ … A substância branca também é conhecida como um corpo puro, purificado pelo fogo, mas que ainda não tem alma ” .

A elevação do fogo, o aquecimento intenso leva então da Albedo à Rubedo.

Então, o sol surge. Unem–se os opostos, os princípios feminino e masculino internos se casam. O vermelho e o branco são o rei e a rainha que celebram suas núpcias nesta fase.

Atingir o vermelho “ indica força de cura ‘o maná’, a ‘imputrescibilidade, a irradiação viva elevada a um grau superior ” .

A Rubedo é sol, é a perfeição do lápis filosoforum. Através dela é obtida a pedra filosofal. O alquimista teria realizado a totalização psíquica, ou seja, a Individuação. A pedra filosofal é o Self.

No processo de psicoterapia, compara-se a Nigredo à fase da catarse; a Albedo a fase interpretativa; a Citredo a da educação e a Rubedo à individuação propriamente dita. Tal qual o processo de individuação depois de iniciado é um “caminho sem volta ”, no sentido de que não há como retroceder. Ao vislumbrar os “ tesouros do inconsciente ” corre-se o risco de ser tragado por ele.

Torna-se importante ressaltar que todo o processo se passa no interior de um vaso hermético, temenos (templo, recinto sagrado) como o denominavam os alquimistas.

No processo terapêutico a relação acontece tal qual nesse vaso, onde terapeuta e cliente depositam seus conteúdos, concentrando-se no centro deste. Neste espaço ocorrem as inúmeras operações alquímicas e transformação dos conteúdos psíquicos. Possuir um vaso corresponde a um estado de relativa introversão, ou seja, olhar para dentro de si.

ARTE-TERAPIA

Desde tempos imemoriais, constata-se que as artes, os mitos, as religiões e a literatura sempre expressaram as mais profundas emoções humanas. São meios de comunicação comum a toda espécie humana. Assim, comunicamo-nos de diferentes formas: “ através da palavra, da mímica e das reações psicomotoras, da realização de atos, das várias modalidades de expressão plástica ” .

A Arte-Terapia, embora originada de uma atividade milenar, é de aparecimento recente como instrumento de terapia. Data de aproximadamente 50 anos e não há ainda um campo unificado de conceituação, a respeito de sua ação terapêutica. O termo Arte-Terapia inclui “ qualquer tratamento psicoterapêutico que utiliza a meditação a expressão artística – dança, música, teatro, representação plástica: pintura, desenho, gravura, modelagem, máscara, marionetes… ” .

Acreditamos que a vida psíquica tem uma tendência inata para a organização e o processo terapêutico através da arte poderá dinamizar esta tendência.

A prática da Arte-Terapia facilita a decifração do mundo interno, o confronto com as imagens que a energia psíquica aí configura. A compreensão destas formas simbólicas possibilita o confronto com o inconsciente, e a tomada de consciência de seus conteúdos, pois o mundo das emoções e o mundo das coisas concretas não está separado por fronteiras intransponíveis.

É, portanto, um processo terapêutico que baseia-se na criação e análise de séries de produções artísticas, que isoladas, poderão oferecer dificuldades para serem decodificadas. As séries de produções permitirão acompanhar com bastante clareza o desdobramento de processos intra-psíquicos e identificar temas que possuam relação significativa com os casos clínicos em estudo. Tais produções, tal qual os sonhos, indicam, indicam motivos e a existência de uma continuidade no fluxo de imagens do inconsciente.

Jung nos mostrou que “ as fantasias dirigidas por reguladores inconscientes coincidem com os documentos da atividade do espírito humano em geral, conhecidos através da tradição e da pesquisa etnológica ” . A forma representando o aspecto consciente e o significado desta, o aspecto inconsciente.

Sabe-se que o processo psíquico desenvolve seu dinamismo por intermédio de imagens simbólicas. O símbolo é o mecanismo psicológico que transforma a energia psíquica; assim a objetivação de imagens simbólicas nestas produções poderá promover transferência de energia de um nível para outro. A imagem passa a ser viva, atuante e poderá ter eficácia criativa. Exprimir emoções através de produções artísticas, torna-se uma excelente forma de confrontá-las. Proporciona-se oportunidades da imaginação desenvolver-se livremente, e se permite ao indivíduo poder participar concretamente do produto imaginado, uma vez que reproduzir o que vemos “dentro” de nós é muito mais complexo do que reproduzir aquilo que é visto “diante” de nós.

O exorcismo dessas imagens aterradoras desgasta o impacto das mesmas, tornando-as menos assustadoras e mais familiares. A arte despotencializa a carga de emoções destas imagens, facilita sua decodificação, além de facilitar a reorganização da ordem interna e a reconstrução da realidade. Expressando através da arte os fragmentos de um ego cindido, ou de um conflito vivenciado desordenada e dolorosamente, o indivíduo conseguirá libertar-se destas imagens aprisionadas e aprisionantes.

É bom lembrar que o psiquismo tem uma incrível capacidade de lutar contra a doença, de sobreviver à anulação completa, mesmo sob toda sorte de pressão. A atividade criativa libera estas forças regeneradoras.

Todo arte-terapeuta deve conhecer a capacidade simbólica da comunicação não verbal.

O símbolo é o “intermediário” que agrupa processos inconscientes e os situa, aos poucos, discriminadamente no nível consciente. Cabe ao arte-terapeuta, portanto, utilizar técnicas que possibilitam situações, para que os símbolos sejam expressos livremente.

O arte-terapeuta deve evitar empregar interpretações a nível verbal, o que pode impedir ou dificultar a livre expressão dos símbolos.

Para que o arte-terapeuta possa tornar mais manifestos os conteúdos latentes nos símbolos, poderá lançar mão de recursos como associações livres, desenho, pintura, modelagem, esculturas, expressões corporais, psicodrama, musical, interação entre técnica plástica e o verbal (desenhando o símbolo e escrevendo palavras que o explicitem), fazendo uma poesia com o símbolo. E outros recursos como armar um brinquedo, fantasia dirigida, caixa de areia; e tantas outras variações de técnicas criativas, verbais, plásticas, corporais, dramáticas, musicais, quantas sejam necessárias a cada paciente.

Para isso é necessário que o arte-terapeuta tenha amplo conhecimento do emprego de técnicas expressivas: corporais, musicais, plásticas, literárias e dramáticas.

A Arte-Terapia é uma atividade terapêutica que constitui-se em um desafio permanente à criatividade.

Como qualquer outra prática terapêutica deve ser uma tentativa determinada de duas pessoas para recuperar a integridade do ser humano através do relacionamento entre elas. No que se refere ao terapeuta, intuição e sensibilidade são essenciais. Mais importantes que regras acadêmicas, embora considerações teóricas sejam necessárias na compreensão da linguagem simbólica.

A Arte-Terapia, devido ao seu grande arsenal de técnicas, facilita bastante a concretização dos propósitos do processo psicoterápico junguiano.

Por propiciar a visualização dos símbolos, o processo terapêutico em Arte-Terapia registra uma grande quantidade de imagens. Através destas, o terapeuta tem acesso ao universo imaginário de seu cliente. Observam-se registros dos mais diversos, carregados de imagens arquetípicas.

Por tratar-se de um percurso arquetípico, o processo alquímico – através de suas operações – aparece muitas vezes representado, como mostraremos a seguir.

  PRINCIPAIS OPERAÇÕES ALQUÍMICAS NA ARTE-TERPIA

1. SOLUTIO

A Solutio é a operação alquímica ligada a água.

Esta é a matéria prima original a partir da qual tudo foi criado. Através dela, pode ocorrer o renascimento. Diziam os alquimistas: “ Não faças nenhuma operação enquanto não transformares tudo em água ” . Sendo assim, “… os corpos não podem ser mudados senão pela redução à prima matéria ” .

Símbolo do inconsciente mais profundo e coletivo, a água é a matriz do universo. O grande útero de onde tudo emerge e “ de onde nasce o Ego. Trata-se da prima matéria que existe antes da diferenciação de elementos pela consciência ” .

A água com seu movimento fluído contorna os obstáculos sem se deter perante eles. Sua persistência e sua maleabilidade são sua força. A Solutio nos fala da sabedoria da água que não luta contra as dificuldades, apenas acompanha o terreno e se adequa às circunstâncias.

A experiência da Solutio “dissolve” problemas psicológicos mediante a transferência da questão para o domínio do sentimento. A Ópus toda pode ser resumida na frase: “ Dissolve e Coagula ”.

Os sonhos com inundações referem-se à Solutio. Representam uma ativação do inconsciente que ameaça dissolver a estrutura estabelecida do ego e reduzido à prima matéria.

Em Arte-Terapia essa operação pode ser exemplificada com os trabalhos diversos.

Sentir a água, batismo e banhos são técnicas utilizadas na proposta corporal. Atividades realizadas na própria água possibilitam uma regressão.

Dissolver dobraduras, picar imagens ou cartas escritas dissolvendo em bacia d’ água para depois reutilizá-las, através da técnica de papier marché ou de reciclagem de papel possibilitam a transformação de conteúdos. Passa-se, então, da Solutio para a Coagulatio.

Ecoline ou aqualine, ou pigmento de xadrez líquido, ou de nanquim pingados em papel canson com água permitem um mergulho profundo no inconsciente. Anilina e aguada de guache também são usadas para dissolver, lavar o que precisa ser transformado. A aquarela e o guache aguado impedem o controle racional sobre as imagens que se formam, facilitando as projeções inconscientes.

Segue a estrutura de uma vivência focalizando a Solutio.

•  Caminhar com Fluidez: caminhar pelo espaço como se estivesse fluindo nas águas.

•  Preencher os vazios: fluindo em grupo, um preenche o vazio deixado pelo outro.

•  João Teimoso: uma pessoa no centro da roda solta o corpo enquanto o grupo da continente e a empurra levemente, como se fosse um boneco João teimoso.

•  Giro dentro da roda: um a um vai ao centro da roda e gira sobre si mesmo, passando pelas outras pessoas na roda, no sentido anti-horário. É uma vivência de regressão ao útero materno.

•  Elasticidade Lenta: deitado, cada um vai fazendo movimentos suaves, como um gato que se encolhe, se estica e rola.

•  Fluidez Fetal: como neném no útero cada um vai fazendo leves movimentos.

•  Nascimento e Crescimento: saindo desse útero, vivencia-se o crescimento.

•  Batismo: cada um será batizado no grupo.

•  Leitura na Água: para finalizar, sobre uma folha molhada, com pincel e ecoline, cada um cria uma imagem que traduza a sua vivência.

2. COAGULATIO

A Coagulatio é o processo que transforma as coisas em terra. Vincula-se, portanto, ao princípio feminino, como imagem do útero acolhedor que propicia a encarnação e concretização das energias vitais. “… É a concretização, ou realização pessoal, de uma imagem arquetípica ” .

Refere-se à ação, à praxis, ao que é concreto e objetivo. Coagular é sinônimo de concretizar, ou seja, tornar matéria. Refere-se a uma estrutura firme e sólida, que possibilita a construção do ego. Portanto “… sua forma e localização são fixas; assim para um conteúdo psíquico, tornar-se terra significa concretizar-se numa forma localizada particular – isto é, tornar-se ligado a um ego ” .

Psicologicamente “ significa que a atividade e o movimento psíquico promovem o desenvolvimento do ego. A exposição à tempestade e à tensão da ação, a batedura da realidade, solidifica a personalidade ” .

O elemento Terra e a Coagulatio nos levam à reflexão sobre o que estamos concretizando nas nossas vidas e qual o peso das nossas atitudes.

A base do trabalho com a Coagulatio é a escultura em argila. Trabalhos com construção em geral, como blocos de madeira, tapete emborrachado, lego. O uso de massa corrida, gesso, papier marché, massa de modelar em várias texturas, também facilitam a Coagulatio. Tocar a terra, plantar, também é um bom exemplo.

Segue o exemplo de uma vivência enfocando a Coagulatio.

•  Caminhar sentindo a terra: andar pelo espaço sentindo o contato dos pés com o chão.

•  Caminhar soltando bem os quadris: andar soltando a pélvis.

3. Modelar o outro: em dupla, uma pessoa senta-se encolhida como se fosse uma grande bola de argila e o outro vai “amassá-la” e modelá-la.

•  Soltar a pélvis no chão: deitado com os joelhos dobrados e os pés no chão, ao som de uma batucada, tirar a pélvis do chão e encostá-la retirando novamente, no ritmo do batuque.

•  Dança da Serpente: como uma serpente, movimentar-se pelo chão com sinuosidade e ir se levantando aos poucos.

•  Carícia no ventre: uma pessoa se deita e a outra massageia seu ventre.

•  Elasticidade sentindo à terra: deitado, sentindo o chão movimentar-se como um gato que se encolhe e se espicha, rola para os lados.

•  Sentir a terra em grupo: sentar-se numa roda com um bolo de argila ao centro. Todos juntos sentem e amassam a terra.

•  Pegar um pedaço da terra e dar uma forma: retirar um pedaço da terra e sentar-se num canto. Sentir a terra de olhos fechados e sem pensar em nada a priori, deixar que suas mãos transforme a terra.

10. Nomear e colocar no mundo: colocar a forma num papel recortado em círculo no centro de uma roda atribuindo-lhe um nome.

4. CALCINATIO

A Calcinatio é a operação do fogo. Logo, toda imagem que contém o fogo livre queimando ou afetando substâncias, aquecendo-as ou fervendo-as, se relaciona com a Calcinatio. Assim, o processo químico da calcinação envolve o intenso aquecimento de um sólido.

O elemento é o fogo que tem como características básicas a luz (pensamento) e o calor (emoções). Sendo assim a Calcinatio é a operação alquímica que vai nos ensinar a lidar com esses dois aspectos.

O princípio regente é o Logos que determina a apreensão clara, lúcida e abrangente, englobando o conhecimento racional. Inclui também a avaliação afetiva, sensorial e intuitiva.

A Calcinatio é efetuada no lado primitivo da Sombra, que acolhe o desejo faminto e instintivo e é contaminado pelo inconsciente.

O fogo da Calcinatio é um fogo purgador, embranquecedor. Atua sobre a matéria negra, a Nigredo, tornando-a branca.

O fogo também vincula-se ao renascimento, como nos mostra o Mito de Fênix. Trata-se de uma ave mítica que ” … é o símbolo do renascimento através do fogo. Segundo a lenda medieval a Fênix vive na Arábia mas voa para o Egito, o país da alquimia, onde se entrega ao seu ritual de morte e regeneração ” .

O produto final da Calcinatio é uma cinza branca. Esta representa a Albedo ou fase de embranquecimento, que admite associações paradoxais.

Da perspectiva mais simples, a Calcinatio é um processo de secagem.

Um importante componente da psicoterapia envolve a secagem de complexos inconscientes que vivem na água.

Como exemplo da operação “Calcinatio “ em Arte-Terapia, temos a vivência de derreter giz de cera na vela. Consiste em dar ao cliente giz de cera de várias cores e uma vela acesa. O cliente é orientado para ir derretendo a cera do giz e formando uma imagem. Proposta semelhante consiste em desenhar com a cera de velas coloridas derretidas.

O fogo brando da vela é o fogo transformador, não queima nem esfria, mas mantém aquecido, transformando, purgando – destruindo as diferenças, extinguindo os desejos, reduzindo ao estado primeiro da matéria.

O trabalho com cores quentes também vincula-se à Calcinatio. Assim como dar forma ao papel, queimando-o.

Outra técnica utilizada, queimar aquilo que não se quer mais numa fogueira ou nas chamas branda de uma vela e depois deixar que o vento carregue as cinzas. Aqui tem-se a Calcinatio seguida da Sublimatio.

A vivência do Mito de Fênix em Arte-Terapia, focaliza a Calcinatio. Segue sua estrutura:

•  Caminhar com Determinação: andar pelo espaço deixando o que não quer mais para trás;

•  Momento de Introspecção: sentado buscar pensar na sua existência, no que deixou para trás e no que deve ser queimado e escrever num papel.

3. Roda em volta do fogo: queimar numa fogueira os papéis, observando sua transformação em cinzas.

4. Ovo: se fechar num grande ovo e voltar a pensar na sua existência, no momento em que vive, nos potenciais novos que estão se desenvolvendo e em tudo aquilo que está pr’á chegar.

•  Saída do Ovo: o ovo se quebra e cada um vai nascendo e crescendo.

•  Vôo da Fênix: e quando sentir-se pronto, cada um faz seu vôo existencial, sentindo o cosmo.

•  Pintura do Novo Ser: apresentação das pinturas para o grupo, nomeando o Ser que surgiu.

5. SUBLIMATIO

Sublimatio vem do latim “sublimis” que quer dizer “elevado”. É um processo ascendente de transformação. Trata-se de uma operação que pertence ao ar.

Sendo assim a essencia da Sublimatio contém sempre um aspecto de elevação. O que é inferior torna-se superior, um corpo se rolatiza, a terra se transforma em ar, algo inferior se eleva, o corpo se torna espírito. Ou seja “ a sublimatio é, psicologicamente, o processo de elevação de experiências concretas e pessoais a um nível superior, ou nível de verdade abstrata ou universal ” .

Tendo o ar um movimento ascensional e a intuição com sua atuação sutil, nos leva ao simbolismo que evoca um outro mundo além da realidade concreta. Assim as portas do universo das idéias platônicas, dos grandes ideais, daquilo que é transcendente, o mundo dos grandes valores, dos sonhos e do sagrado, abrem-se. Trás, portanto, uma compreensão mais abrangente da vida vem do distanciamento que obtemos ao nos elevarmos acima de nossos problemas, trazendo novas perspectivas.

A Sublimatio também pode ser entendida como simbolismo de ascensão, de translação para a eternidade. Assim, tendo a alma se purificado, esta pode subir os degraus das esferas planetárias.

O perigo da Sublimatio é quando esta é levada a extremos, o que leva a dissociação, pois “… a capacidade de dissociação da psique é tanto a fonte da consciência do ego quanto a causa da doença mental ” .

Em Arte-Terapia vincula-se a Sublimatio vivências ligadas à respiração de uma maneira geral e ao sopro. Alguns exemplos são: respirar soprando o ar na inspiração, respirar soltando sons, dança com panos diversos, relaxamento dinâmico focalizando a respiração (soltar sons vinculados ao movimento), visualização criativa ligada a inspiração e a respiração, soprar bexigas, soprar tinta no canudo, soprar farelo de giz de cera ou pastel.

A construção de móbiles também está ligada à Sublimatio, referindo-se ao mudo das idéias, ao pensamento.

O tipo de música que facilita o contato com a Sublimatio leva a uma vivência de transcendência. O som de flautas de pam, órgão e da harpa, em geral, fazem com que o sujeito sinta-se como se estivesse saindo do chão. São exemplos de música: Theme from Limelight e Meditação de Thaís – com arranjo de Zamfir; Beatriz, de Chico Buarque de Holanda; Ave Maria, de Shubert; Recuerdos, de Taylor; Tritese, de Chopim; Abraham’s Theme, de Vangelis; Space/Time Continuum, trilha sonora do seriado Cosmos; The Butterfly Suite (Overture), de Louise Eldridge.

Segue o modelo de uma vivência em grupo tendo por base a Sublimatio.

•  Roda Inicial : a roda é o princípio do grupo e marco do início do trabalho.

•  Caminhar de Peito Aberto: andar pelo espaço abrindo o peito, expandindo, assim, a capacidade respiratória.

•  Encher Bolas: focaliza o sopro: trata-se encher bolas coloridas, depois experimentar soltar o ar no seu corpo e encher novamente, soltando-o nos outros. No final cada um amarra a ponta de sua bola, deixando-a cheia.

•  Fluir com as bolas e o outro: propõe-se sentir a leveza, curtir as bolas, sentir sua leveza. Depois trocá-las com os outros.

•  Sentir o ar no corpo e as bolas, trocando com o outro

•  Soprar o outro pelo dedo: sentado dois a dois, soprar o outro pelo dedo como se ele fosse um grande balão de ar.

•  Soprar o corpo do outro: um deitado e o outro vai soprando, de forma que o primeiro possa sentir o ar no seu corpo.

•  Ninho: num grande ninho, todos deitados com se estivessem num grande ovo, num grande útero. Sentindo a sua respiração, o seu eu, a sua existência.

•  Garça – Vôo Existencial: cada um sai do ninho, batendo as asas, partindo para um vôo existencial.

10. Conexão com o universo: encontrando as outras graças, todos voam juntos.

11. Desenhar, pintar sua emoção – Sopro com Canudos: numa folha de papel canson A2 umedecida soprar canudos com tinta guache colorida na ponta,

  CONCLUSÃO:

  A alquimia é uma forma de compreendermos o processo de individuação. Através das imagens, podemos perceber nitidamente como se dá este percurso.

Muitas são as semelhanças entre o processo alquímico e a Arte-Terapia.

Na Arte-Terapia, além da relação terapeuta-cliente, existe a “opus” não só a nível interior como a nível concreto. O cliente vê sua obra. E essa obra interfere na psique e a psique interfere na obra. Como na alquimia, mestre e discípulo acompanham a transformação da prima matéria. Assim como os alquimistas projetavam seu inconsciente nos metais, o cliente projeta seu inconsciente na produção artística. E a medida que essas imagens vão sendo transformadas, os conteúdos psíquicos também vão se transformando. Como na alquimia, que o inconsciente é projetado na obra, e a obra interfere no processo psíquico do alquimista.

Na alquimia entre o mestre e o discípulo há a obra. Na Arte-Terapia, também, entre terapeuta e cliente há a produção artística; essa produção recebe as projeções do analisado e assim, o terapeuta pode ajudá-lo a elaborar essas projeções com mais facilidade, pois a transferência não é tão somente no terapeuta, mas muito dessa energia vai para a obra, prá produção artística; ficando o terapeuta de facilitador desse processo.

O set terapêutico como o temenus, fornece a proteção e os materiais necessários, para essa transformação ocorrer.

Na alquimia, o espírito vai sair da matéria. Na Arte-Terapia sairá da produção do cliente que é a matéria que será transformada, através de trabalhos com o fogo (Calcinatio), com a água (Solutio), com a argila, terra (Coagulatio), com o ar (Sublimatio).

Nas produções artísticas iniciais aparece claramente a sombra, quando o cliente vai entrar em contato com seu lado negro, a Nigredo; é a vivência do caos, surge nas obras a massa confusa. Vê-se, então, o confronto com a sombra. Nesse momento, com muito sofrimento é preciso morrer, para de novo renascer. Matar o homem velho para fazer nascer o homem novo – ocorre a mortificatio e a putrefatio.

Mas, como todo símbolo, os opostos estão contidos nessas produções artísticas. Há que se separar os conteúdos (Separatio), lavá-los (solutio), amplificá-los, clareá-los, alcançando a Albedo, atuar praticamente através dele, chegando a Citredo, para mais adiante juntá-los conscientemente (conunctio), na Rubedo.

É quando ocorre o casamento entre o Rei e a Rainha, o hierosgamos.

Esse processo não termina, porque novos desafios aparecem e podem levar o indivíduo de novo à Nigredo, e as operações alquímicas vão se repetir. Na realidade é uma espiral (circulatio), mas sempre em nível crescente de tomada de consciência, sempre uma “oitava acima”.

Na coniunctio superior, quando se dá a Rubedo, atinge-se a pedra filosofal, a união dos opostos, a totalidade; alcança-se o amor cósmico e transpessoal, o que nos leva a ampliar a sabedoria, a multiplicar a sabedoria – multiplicatio, dessa forma podemos ajudar os outros a se transformar e ajudar a transformar o mundo.

Se a terapia fosse feita só pelo discurso verbal, o cliente pode se defender através da lógica. Mas, com as imagens, com o corpo, não há como controlar, como manipular, e assim com a Arte-Terapia o sujeito pode se permitir fluir, e ir deixando a alquimia ser feita.

Como o alquimista, o cliente projeta “… sobre os materiais manipulados acontecimentos em curso no seu inconsciente. Essas projeções se afiguravam ao alquimista propriedades da matéria, mas de fato o que ele experienciava era o próprio inconsciente ” .

O presente trabalho mostra como utilizar a Arte como instrumento facilitador do processo de individuação. Acredito ser este um instrumento rico e de grande relevância para os terapeutas de base junguiana, visto que trás o símbolo para o concreto, facilitando não só a sua consciência, como sua transformação e amplificação.

No mais, como diz Gouvêa :

A imagem é veículo do Ser. Encontra-se no profundo da pessoa, no mundo de suas intuições, uma vida inteira a querer se expressar. De início, uma lenta e penosa gestação onde todo um universo de experiências começa a tomar forma. No momento exato, há uma ruptura definitiva e o Ser se manifesta em forma de imagem. Na imagem que há por trás das emoções a “voz do Ser” se faz ouvir. A compreensão do Ser, clareira do Ser, abrigou-se nessas imagens. Na emoção jaz uma imagem que busca exteriorizar-se e essa imagem assume ao mesmo tempo um caráter de significação e comunicação (voz e Ser). O mundo constitui sempre o horizonte para o qual ele está orientada. A imaginação imagina e se enriquece incessantemente de novas imagens, que, tateando nos labirintos de nossa psique, saem ao encontro de um mundo que bate do outro lado de nossa intimidade.


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Idém. – Par. 40.

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Idem – par. 49 .

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In RIBEIRO, Maria de Lourdes de Campos – Terra – Planeta Água: o Simbolismo das Águas na Psicologia, Mitologia e Alquimia. Resumo da conferência apresentada no 3º Curso Sobre Águas Minerais, em Poços de Caldas – MG – p. 17.

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Idem – p . 101.

Idem – p . 103.

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JUNG, Carl Gustav – Psicologia e Alquimia . Obras Completas, vol. XI I . Petrópolis, RJ: Vozes, 1994 
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A REVELAÇÃO DO INCONSCIENTE ATRAVÉS DA ARTE 
REVISTA IMAGENS DA TRANSFORMAÇÃO 
Nº. 8 – VOL. 8 – 2001. 



RESUMO:

Esse artigo visa elucidar a dinâmica atemporal do inconsciente, que atua numa forma prospectiva – com antecipação de acontecimentos futuros, e de uma forma retrospectiva, trazendo conteúdos do passado, mesmo da fase pré-natal. Pretende-se mostrar também que a Arteterapia é um meio eficaz na captação e expressão desta riqueza do inconsciente.

 

ABSTRACT:

This article aims to elucidate the unconscious atemporal dynamics that takes place in a prospective way – with anticipation of future events, and in a retrospective way, bringing psicological contents from the past, even from the prenatal phase. It is also shown how Art Therapy is an effective tool in the reception and expression of this wealth of the unconscious.

“… devo admitir que o inconsciente revela às vezes

uma inteligência e intencionalidade superiores à compreensão consciente

de que somos capazes no momento ”.

C. G. Jung (1)

Tendo o inconsciente uma dinâmica atemporal, ele atua de uma forma retrospectiva, trazendo arquivos da vida pré-natal e/ou outras, como apresento no caso clínico X; também atua de uma forma prospectiva, com a antecipação de acontecimentos futuros, apresentado aqui ,com uma experiência pessoal da antecipação da minha gravidez.

A Arteterapia é um dos meios que possibilita a confirmação da realidade criativa, dinâmica e atemporal do inconsciente.

Segundo Jung o inconsciente não é só o depósito do reprimido e desejos não realizados, mas também traz as marcas das vivências pré- natais e|ou outras. E se manifesta como uma matriz geradora de novos conteúdos numa perspectiva além do tempo e da pessoa.

Ele afirma :

… a priori nada impede de pensar na possibilidade de que as tendências inconscientes tenham um objetivo situado além da pessoa humana, assim como também é possível imaginar que o inconsciente “só sabe desejar” (2).

… o símbolo tem um significado muito complexo, … pressupõe múltiplos significados. O símbolo tem um futuro. O passado não basta para interpretá-lo, porque germes do futuro estão incluídos em todas as situações reais . (3)

A dinâmica do inconsciente expressa-se por suas imagens através de sonhos, desenhos, fantasias, etc…; modos que são “ auto-representações de desenvolvimentos inconscientes , os quais permitem a expansão gradual da psique “ (4).

Sendo a linguagem básica do inconsciente as imagens, a Arteterapia se mostra um recurso dos mais ricos para a compreensão e integração desses conteúdos à consciência.

A prática da Arteterapia facilita a decifração do mundo interno, o confronto com as imagens que a energia psíquica configura. A compreensão destas formas simbólicas possibilita o confronto com o inconsciente, e a tomada de consciência de seus conteúdos.

A relevância de uso de técnicas expressivas como meio de acesso ao inconsciente nos é confirmada por Jung, onde se conjuga imagem e ação num processo de auto-organização e desenvolvimento, a que ele chamou processo de individuação.

… com a mão que guia o creiom ou o pincel, com o pé que executa os passos de dança, com a vista e o ouvido, com a palavra e com o pensamento: é um impulso obscuro que decide, em última análise, quanto à configuração que deve surgir; é um apriori inconsciente que nos leva a criar formas … A imagem e a significação são idênticas, e à medida que a primeira assume contornos definidos, a segunda se torna mais clara. (5)

As técnicas psicoterapêuticas articulam-se cada vez mais em direção as vivências

… técnicas corporais para expressar as emoções, técnicas baseadas na imaginação, técnicas plásticas, técnicas oraculares, técnicas produzindo alterações da consciência etc. A busca dos significados simbólicos é desempenhada muito mais pela mobilização dos símbolos, dentro de sua elaboração, do que por sua interpretação racional, mesmo sendo esta levada a cabo através do método das associações livres de Freud ou do método de amplificação de Jung. Parece-me que a capacidade de elaboração racional exclusiva para causar transformação psíquica chegou a seu limite. Se isso assim é, o caminho do desenvolvimento da técnica psicoterápica é o caminho da mobilização da vivência pelas técnicas expressiva (6).

Portanto,

… o analista que se utiliza de vivências, percebe que as fronteiras entre o mundo imaginário e o mundo concreto são mais facilmente transponíveis. Ao observá-las sob a ótica junguiana consegue entender a estrutura e a dinâmica psíquica do analisando, bem como identificar Tipologias. Tem diferentes recursos para ativar símbolos pouco energizados, trazê-los à tona e amplificá-los (7).

Sabe-se que o processo psíquico desenvolve seu dinamismo por intermédio de imagens simbólicas. O símbolo é o mecanismo psicológico que transforma a energia psíquica; assim a objetivação de imagens simbólicas nestas produções poderá promover transferência de energia de um nível para outro. A imagem passa a ser viva, atuante e poderá ter eficácia criativa. Exprimir emoções através de produções artísticas, torna-se uma excelente forma de confrontá-las.

… as técnicas expressivas têm um enorme poder de intensificar a elaboração simbólica porque elas ativam a raiz arquetípica dos símbolos através da mobilização de dimensões pouco acessíveis à palavra … também podem ser indicadas, porque elas ampliam o contexto da elaboração simbólica além do contexto verbal (8).

As séries de produções permitirão acompanhar com bastante clareza o desdobramento de processos intra-psíquicos e identificar temas que possuam relação significativa com os casos clínicos em estudo.

Caso Clínico X

Pr. tem 27 anos. Entregue a uma casa de adoção ao nascer, foi adotada por um casal sem filhos, que a criou rodeada de amor e carinho. Nunca teve contato com sua família de origem, nem nada sabia da mesma.

Buscou terapia pois sentia uma dor terrível no peito, angústia, respirava mal e sentia uma ardência no ventre, como se este estivesse queimando. Além disso apresentava uma certa dificuldade com sua imagem corporal.

Alguns meses após o início de seu processo psicoterápico, foi sugerido que desenhasse seu corpo, preenchendo-o com símbolos. Neste desenho pr. trouxe a imagem de um útero que sangrava.

Amplificando a imagem desse útero, sugerindo que pr. representasse o que esse útero lhe sugeria, apareceu a imagem de uma criança apavorada sofrendo uma agressão.

Levantou-se a hipótese de Pr. já ter se submetido a algum aborto, o que foi negado por ela. Nunca engravidara. Continuando o processo de amplificação, surgiram, então, uma série de imagens de aborto, onde o feto era esfaqueado, arranhado com garras que o cortavam, ameaçado com objetos cortantes.

Pr. não entendia o porquê dessas imagens. Anos mais tarde, querendo saber a história de sua origem, Pr. buscou sua família biológica. Reencontrou a mãe biológica e soube que esta fizera várias tentativas de aborto frustradas. Quando resolveu, então, entregá-la a um lar de adoção.

Embora Pr. não tivesse a consciência da violência que sofrera durante a gravidez de sua mãe, seu corpo e seu inconsciente tinham esse registro. Não havia como ela verbalizar algo que ocorreu numa fase pré-verbal.

Este caso mostra que o inconsciente tem um arquivo dinâmico que quando em situação de ativação traz à tona lembranças vividas desde a época pré-verbal e/ou outras épocas. Ele atua de uma forma retrospectiva. E a arteterapia facilita a expressão dessas imagens, atualizando-as e integrando-as à consciência.

Minha Experiência Pessoal

Iniciei minha formação em arteterapia em 1990. Fiz a formação e depois comecei um processo de auto-conhecimento através da arte em 1993.

Nesse momento de minha vida o meu desejo de ter um filho era grande, mas já havia sofrido dois abortos espontâneos. Aos 42 anos, já não acreditava muito nesta possibilidade. Mas o inconsciente não tem disfarce e começou a me mandar as imagens.

Na época do curso de formação, com lápis preto grafite, fiz uma imagem de uma escultura que havia visto no museu. Quando iniciei meu processo em arteterapia, escolhi essa imagem, entre tantas outras, para amplificar. O meu inconsciente me levou a essa imagem. Aparentemente uma simples escultura.

Usando aquarela transformei essa imagem no que naquele momento meu inconsciente estava vendo: uma figura alada grávida.

Foi sugerido um trabalho com água. Esta técnica consiste em colocar numa bacia d’ água elementos orgânicos, tais como: folhas, flores, sementes … O desejo da maternidade foi ficando mais claro. Pois ao desenhar o que sentia desta água, surgiram imagens de uma célula se multiplicando.

Amplificando com a argila surgiu então o útero.

Passando para o fogo, derretendo giz de cera de forma aleatória, surgiu a imagem da fecundação: espermatozóides em busca do óvulo.

Explorando outro tipo de material, usei papel canson molhado e ecoline , e foram surgindo manchas, onde identifiquei um ser das águas. Amplificando essa imagem, passei, então, para um desenho com pastel a óleo, surgiu então um ser primitivo, com semblante infantil. Continuei a amplificação com argila e, do trabalho com o barro, configurou-se o esboço de um feto.

Meses depois descobri que estava grávida. Meu desejo saíra do inconsciente, do mundo das imagens para o concreto. Nasceu, então, meu filho Thiago.

Essa minha experiência mostra que o inconsciente atua de uma forma prospectiva.

Embora conscientemente eu não acreditasse mais na possibilidade de realizar este meu desejo, o meu inconsciente percebia que meu corpo e minha alma estavam se preparando para gerar um novo ser.

CONCLUSÃO

A arteterapia, que trabalha com a expressão e criação artística, é um canal direto para receber a informação do sistema límbico tanto de memórias pré-verbais, como imagens simbólicas, precursoras de novos acontecimentos que irão se realizar no futuro.

Jung mostra ao longo de sua obra, que o inconsciente não só reage; ele age, ele prediz, ele alerta, ele abre horizontes, ele elucida. Sendo a escrita do inconsciente essencialmente imagética, a Arteterapia é um meio eficaz para captar e expressar essas imagens, trazendo-as para sua expressão material, abrindo-se para a integração à consciência.

Conforme o embasamento teórico da Psicologia Analítica de Jung e validado pelos casos apresentados com suas imagens, fica evidente o quanto a Arteterapia se coloca na vanguarda desse contato com o inconsciente, visando integrar esses conteúdos à consciência.

 

LIGIA DINIZ

Psicóloga-CRP 1900-RJ

Arteterapeuta

Pós- graduada em Psicologia Junguiana

Bacharel em Artes Cênicas

Facilitadora de Biodança


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA:

BYINGTON, Carlos – Uma Avaliação das Técnicas Expressivas pela Psicologia Simbólica , in Junguiana 11 – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, – p.136 (6) e p. 139 (7).

JUNG, Carl Gustav – A Vida Simbólica – Obras Completas, Vol. XVIII/2. R.J., Petrópolis: Vozes, 2000.

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(1) ———————– – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975 .

(2) {4) (5) – ———— – O Eu e o Inconsciente, Obras Completas , vol. VII -2 . Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.

————————– – Tipos Psicológicos, Obras Completas, vol. VI, Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.

(3) MAQUINE, W e HULL, R. F. C. – C. G. Jung: Entrevistas e Encontros – Cultrix.

PHILIPPINI, A.- Apostila de Arteterapia , Ed. Clínica Pomar, RJ: 1989.

(8) SILVEIRA, Nise – Imagens do Inconsciente . Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.

ARTERAPIA NA PSICOSSOMÁTICA 
REVISTA IMAGENS DA TRANSFORMAÇÃO 
Nº 9 – VOL. 9 – 2002.



RESUMO:

Este artigo tem como objetivo mostrar a eficácia da arteterapia no referencial da psicologia junguiana, no tratamento de pacientes com manifestações psicossomática. Embasamos nosso trabalho na afirmação de que todo represamento do fluxo da libido redundará em sintomas, sejam eles somáticos ou psíquicos; sendo que os sintomas físicos são vistos como símbolos vividos a nível somático.

 

ABSTRACT:

The main purpose of this paper is to show how efficient may be artherapy, in the context of Jung psychology, to treat pacients with psycosomatic symptoms. Our work is based on the assumption that blocking of the libido flux will result in rather somatic or psycho symptoms; moreover, physical symptoms are considered as symbols experienced at a somatic level.

O paradigma Cartesiano tinha como principais características: a extroversão, o materialismo mecanicista, o dualismo, o cientificismo ou positivismo. Tal visão tem suas bases na lógica linear e nos princípios da identidade, da causalidade e do terceiro excluído.

ARTERAPIA NA PSICOSSOMÁTICA

Nessa visão corpo e mente são dissociados: ” … o corpo foi cada vez mais compreendido como uma máquina a ser analisado em suas partes, mente e corpo separados “(1).

Com a evolução científica tem se estabelecido um novo paradigma, o paradigma quântico-Capra.

Esse modelo se caracteriza por ser: finalista, sistêmico, holístico. Nessa visão, corpo e mente formam um todo, que é uma unidade dinâmica.

O modelo holístico de psicologia vai até um nível transpessoal e supõe que a psiquê se estrutura em múltiplos níveis (como de resto toda a realidade): o de Ego, o nível Bissocial, o Existencial e o Transpessoal. Em quaisquer desses níveis, a psiquê é sempre uma totalidade que se auto-regula, fato já afirmado por Jung nos primeiros anos do século XX.

Jung com o princípio da sincronicidade, isto é, relações acausais com o mesmo significado; com sua perspectiva holística do ser humano, sua perspectiva sistêmica, relativista, finalista, espiritualista; a sua própria ética na interpretação dos valores, e sua visão ecológica se torna um precursor do novo paradigma emergente.

Tratando da relação corpo-mente ou psique-soma, Jung explicitou-os dentro da visão unicista colocando essas duas realidades como cara e coroa de uma mesma moeda.

” A Psique e a matéria são aspectos diferentes de uma única e mesma coisa ” (2).

A cisão psique-corpo tira vida do indivíduo, tanto física quanto psíquicamente. Quanto maior essa cisão, maior será a nossa capacidade de adoecer.

” Toda e qualquer doença tem uma expressão no corpo e na psique simultaneamente ” (3).

Não é mais possível distanciarmos psique e corpo. Ambos formam uma unidade funcional que pode se manifestar simultaneamente tanto na saúde como na doença.

Assim o sintoma físico é um símbolo que expressa uma dissociação e revela um caminho. Trata-se de um apelo do inconsciente que se manifesta corporalmente abrindo uma possibilidade de resgate.

Todo sintoma se coloca como um sinal de alerta de um desequilíbrio de funcionamento da pessoa.

Adoecemos na proporção inversa à nossa capacidade de mentalização e simbolização. Ou seja, quanto maior a elaboração, maior a relação ego-self e consequentemente menor é a somatização.

Segundo Jung (4) todo represamento de fluxo da libido desencadeia sintomas, sejam eles físicos ou psíquicos. A libido na sua polivalência sexual, epistemológica, lúdica, espiritual etc., precisa encontrar espaços de representação e integração no psiquismo.

O paciente somático está mergulhado no corpo real; é preciso deslocar o real p’ro simbólico. No processo de análise destes pacientes é preciso fazer com que o significado seja extraído do físico e vá p’ro psíquico. De forma, que os conteúdos inconscientes que estão na mente e no corpo sejam trazidos p’ro campo da consciência e que sejam elaborados. Quanto mais se amplifica o campo da consciência mais saudável ficamos.

Várias são as possibilidades de trazer para a consciência essa libido reprimida, entre elas destacamos as técnicas expressivas que possibilitam a mobilização da energia através de uma forma simbólica e à medida que toma forma, que se expressa, vai propiciando a visualização dos símbolos facilitando a sua eleboração.

Reafirmamos que o paciente orgânico codifica seu conflito no sistema somático.

O símbolo é a “máquina transformadora” da energia entre diferentes sistemas – orgânico-psíquico – almejando alcançar a consciência.

Jung descreveu vários métodos de amplificação, nos quais pode se realizar a transição entre conteúdos inconscientes, sintomas orgânicos ou emocionais, para o plano consciente, como imaginação ativa, pintura, argila, desenho etc.. Tais recursos são instrumentos da Arteterapia.

O sintoma orgânico corresponde a uma cisão na representação de um complexo, onde a parte abstrata psíquica não chegou a ser desenvolvida ou foi reprimida. A manifestação orgânica da doença como sintoma-símbolo passou a se desenvolver automática e descontroladamente, revelando seu caráter complexo inconsciente.

A Arteterapia auxilia na descoberta e na integração da polaridade abstrata dos complexos envolvidos, ou seja a polaridade que não se fez como representação psíquica. Sabe-se que o processo psíquico desenvolve seu dinamismo por intermédio da imagem simbólica. Para Jung o símbolo é sempre polissêmico, portador de sentido e transformador da psique. Jung recomenda o “andar em torno do símbolo” – o circumbulatio – sem reduzi-lo por interpretação. A Arteterapia, que se utiliza de técnicas expressivas para a amplificação (desenho, modelagem, pintura, dramatização, caixa de areia, entre outras), leva a esse movimento de circunscrever o símbolo sem interpretá-lo, sem reduzi-lo, ao contrário, amplificando-o.

O paciente somático está mergulhado no corpo real, esfera específica do Arquétipo da Grande Mãe, aonde não há representação mental para o sintoma.

O arquétipo da Grande Mãe predomina no universo da criança em seu primeiro ano de vida, período pré-verbal, onde o acolhimento, a nutrição e o conforto físico são fundamentais na organização da personalidade.

Falhas na vivência do arquétipo da Grande Mãe leva a sérias disfunções a níveis arcaicos, como psicose, somatização.

Dentre os aspectos positivos da Grande Mãe ressaltamos a proteção e a decodificação. A proteção implica uma decodificação. A mãe vive p’ro bebê a função transcendente; a de fazer o link entre consciente/inconsciente.

À medida que há falhas nessa função materna, a criança vai cada vez mais deixar de fazer a evolução da função simbólica p’ro nível abstrato e ela vai fixar o símbolo no concreto, no corpo.

A Arteterapia, como se utiliza de técnicas não verbais tem uma sintonia com o arquétipo da Grande Mãe, facilitando ao paciente fazer uma representação mental, ou seja, uma imagem simbólica que possa levá-lo a uma transformação do todo.

” As técnicas expressivas favorecem muito a constelação do dinamismo matriarcal na análise, enquanto que a elaboração racional pode favorecer o dinamismo patriarcal, em detrimento desta vivência básica matriarcal “(5) .

A HISTÓRIA DE MARIA

Maria tem 35 anos, divorciada, com um filho. Buscou psicoterapia na época de sua separação.

Filha caçula, era o xodó do pai, com quem tinha uma relação de muito afeto. Sua mãe era muito autoritária, exagerada e sufocadora. Maria se sentia mais protegida e cuidada pelo pai. Copiava o pai em tudo; endeusava esse pai.

Maria relata que desde criança apresenta sintomas alérgicos, mais frequentemente rinite e asma. Pelos estudos psicossomáticos há uma tendência a explicar que as manifestações alérgicas e a asma normalmente decorrem de uma dificuldade expiratória; não há espaço para soltar o seu ar, a sua vida, o seu ser, o eu genuíno. Há um tolhimento do seu lado vital por excesso de cuidados, de valores que abafam.

Da sua história destaco um dos aspectos que me pareceu relevante na compreensão de sua dinâmica psíquica. O caso de Maria me fascinou por que ele expressa de uma forma visível o aspecto espiritual da libido tão importante no pensamento junguiano.

O pai de Maria era comunista e ateu; sua mãe também. Maria cresceu escutando que Deus não existia: com essa interdição para o lado religioso. Na sua infância nunca entrou numa igreja. Em sua casa, ao contrário dos outros lares, rezar, ir à missa é que transgredia a ordem; pecar num certo sentido, pois iria contra o pai. Obedecer pai e mãe e adorar a Deus, não era possível. Maria lembra que sempre que se sentia insegura, amedrontada, recorria a Deus, escondida em seu quarto. Como não sabia rezar, criava suas próprias orações. Sentia-se culpada por isso e não o revelava a ninguém.

Constata-se desse modo a afirmação junguiana desta realidade intrínseca, arquetípica do componente espiritual da libido.

Na adolescência, Maria acaba por concordar com seu pai que a religião dopava o povo, e aceita o modelo paterno, não acreditando em Deus.

Após mais de um ano de terapia, quando estávamos revendo a figura paterna, Maria teve uma forte reação alérgica: a pele de seus braços e pernas ficou cheia de eczemas e, depois, os eczemas melhoraram, mas a pele ressecou, parecia que estava escamando.

Nesse momento lemos o conto Pele de Foca. Este conto trata da história de uma mulher-foca que tem sua pela de foca roubada e, por isso, aceita casar-se com um homem solitário por algum tempo. Passado um certo tempo sua pele começa a ressecar – descama e racha. Mesmo tendo um filho com este homem, ela se propõe a regressar para seu antigo lar. É, porém, impedida pelo marido que esconde-lhe a pele roubada. Ouvindo um chamado distante, o menino encontra a pele da mãe e a devolve. De posse de sua própria pele, a mulher-foca inicia seu processo de cura e recupera sua verdadeira identidade.

Maria se emociona com a história. Percebe que também ela estava ressecando, pois não estava com a pele que queria. Sua pele não correspondia à sua essência.

Desenhou, então, como se sentia (imagem 1): uma mulher seca. Amplificando esta imagem com uma colagem, Maria se vê mergulhada numa água escura carregada com ancestralidades e conteúdos bastante primitivos (imagem 2).

Nessa época Maria começa a sonhar com padres. Propus que representasse o sonho na caixa de areia. A imagem que surge trás uma cigana ao centro com uma criança. Ela está cercada de animais domésticos e a figura de um padre vindo ao seu encontro.

Retornando a relação dessas imagens à figura do padre, Maria chega à conclusão que o padre é ” o pai que acredita em Deus “. Ela estava buscando dentro dela um modelo diferente do modelo paterno.

Por ter um modelo paterno muito positivo, Maria aceitava todos os valores de seu pai sem questioná-los: incorporou uma pele que não condizia com a sua maneira de perceber o mundo. Seu pai não acreditava em Deus, mas ela sim e, portanto, sentia falta desse lado religioso. Embora não quisesse seguir uma religião ou um dogma religioso, queria assumir sua religiosidade. Como houve o represamento do componente espiritual da libido as consequências se manifestaram, quando começou a trabalhar o pai, esse complexo foi ativado causando os sintomas.

A partir do trabalho realizado, ela pôde assumir e vivenciar sua espiritualidade. Pôde, também, perceber outros valores e modelos de comportamento que não condiziam com sua forma de pensar e sentir, mas que eram a ” pele ” do pai e não a sua. Neste processo, sua pele foi voltando ao normal.

Maria continua nesse processo de descoberta, diferenciando-se cada vez mais do Complexo Paterno.

CONCLUSÃO:

A somatização de Maria pode ser compreendida como uma forma de compensação a uma atitude unilateral da consciência. Ao não querer seguir os dogmas de uma religião, nem ter uma religião formal, Maria reprimiu em si a religiosidade, a fé, seu lado espiritual; seguindo a mesma atitude rígida do pai.

A doença seria assim uma expressão simbólica, uma forma do organismo expressar uma desarmonia entre um desejo e uma resistência. O desejo de amor a Deus, junto com o medo das conseqüências desse amor. Ou seja, medo de perder o amor do pai, de deixar de ser a filha querida do pai.

O símbolo aparece na polaridade concreta, corpórea, como uma reação do organismo: uma compensação que tem como finalidade levar o indivíduo a integrar o reprimido na consciência, religando o Ego ao seu eixo com o Self.

Ao entrar em contato com ele e amplificá-lo é possível se confrontar com seus complexos, integrá-los e corrigir seu desenvolvimento unilateral.

A Arteterapia com base junguiana, utilizando técnicas expressivas, contos, caixas de areia etc., facilitou a transdução dos símbolos de sua polaridade orgânica para a abstrata, levando a paciente a um processo que conduziu a integração dos conteúdos emocionais e à individuação, diminuindo gradativamente a expressão patológica e provocando uma melhora em sua saúde geral.

 

LIGIA DINIZ

Psicóloga – CRP 1900-RJ

Arteterapeuta

Pós- graduada em Psicologia Junguiana

Membro Trainée do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro

Bacharel em Artes Cênicas

Facilitadora de Cursos de Formação em Arteterapia de Base Junguiana no Rio de Janeiro e em Porto Alegre

Facilitadora de Terapia Corporal em Biodança.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA:

(1) BOECHAT, Walter – O Dilema do Corpo/Mente: Novas Abordagens Possíveis – in Cadernos de Psicologia, Rio de Janeiro: USU, v. 3 – 2000.

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DAHLKE, Rüdiger e DETHLEFSEN, Thorwald – A Doença como Caminho: uma Visão Nova da Cura como Ponto de Mutação em que um Mal se Deixa Transformar em Bem – São Paulo: Cultrix, 1998.

GODDECK, George – Estudos Psicanalíticos sobre Psicossomática . São Paulo: Perspectiva, 1992.

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RAMOS, Denise – A Psique do Coração: Uma Leitura Analítica do seu Simbolismo – São Paulo: Cultrix, 1990

———————- – A Psique do Corpo: uma Compreensão Simbólica da Doença – São Paulo: Summus, 1994.

ESPIRITUALIDADE E ARTE TERAPIA 
REVISTA IMAGENS DA TRANSFORMAÇÃO 
Nº. 10 – VOL. 10 – 2003. 



RESUMO:

Este artigo tem como objetivo mostrar a importância da espiritualidade na Psicologia Junguiana, como esta intensifica sua forma de manifestação na segunda metade da vida e como a arte é facilitadora deste processo.

ABSTRACT:

This article has objective show the importance of spiritualidy the junguian psychology how to mifesty intensify form on the second middle of the life and how the arts facilitily this process.

ESPIRITUALIDADE E ARTE TERAPIA

Desde os tempos mais remotos constata-se que as religiões, as artes e os mitos sempre expressaram as mais profundas experiências humanas. Trilhar estes caminhos pode levar o ser humano, através do auto conhecimento a vivenciar o numinoso, o espaço sagrado.

Para Jung a religiosidade é uma função natural, inerente à psique. É um fenômeno universal e genuíno, e não algo aprendido; não é um derivado do complexo paterno.

O aspecto espiritual da libido é fundamental no pensamento junguiano. É uma realidade intrínseca, arquetípica. Quando Jung fala de religião, não está se referindo a seitas, instituições etc… Ele está falando de uma “ atitude religiosa como função psíquica natural, é a experiência religiosa na qualidade de processo psíquico ” (Nise da Silveira).

A religião para Jung é a experiência; algo nos toca e nós nos transformamos. A religião tem que ser uma experiência transformadora.

Não se trata de religião como algo concreto, que possui credo, moral, normas. Mas, sim de uma fé, que significa o encontro vivo com Deus.

A palavra religião significa religar re ligare ), tornar a ligar, e é nesse sentido que Jung a usa. Religar o consciente com certos poderosos fatores do inconsciente, vivenciando assim, o numinoso.

Leonardo Boff, no seu livro “A Águia e a Galinha”, compara a religião à dimensão-galinha e a fé à dimensão-águia. Nessa não valem normas. “Emudecem as palavras … Diante da suprema Alteridade e do eterno Amor , o ser humano muda o estado de consciência. Entra num estado místico. Tudo fica numinoso e carregado de energia divina .”

A religiosidade, como toda função pode ser desenvolvida, como pode ser também negligenciada.

E é na segunda metade da vida que a religiosidade se torna mais presente e mais premente.

Entre todos os meus doentes na segunda metade da vida, não houve um só cujo o problema mais profundo não fosse constituído pela questão de sua atitude religiosa. Todos, em última instância, estavam doentes por ter perdido aquilo que uma religião viva sempre deu em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum curou-se realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isto está claro, não depende absolutamente de adesão a um credo particular ou de tornar-se membro de uma igreja (Jung).

A espiritualidade é a busca do significado.

Geralmente, é a partir da meia idade que buscamos um significado para a vida; procurando o significado, procurando pertencer, isso significa que estamos todos explorando o território – Deus. Deus é o processo cósmico de auto-organização.

Segundo Jung, quando estamos próximos da velhice inicia-se o Ciclo Cósmico, ou seja, é o momento em que há uma capacidade maior de discernimento. A visão do sentimento global do seu processo resultaria então, no encontro do significado profundo da vida, no encontro do Self.

O Self é o todo, a totalidade onisciente e consciente.

O Self é definido como o arquétipo da totalidade e fonte de energia.

Jung coloca no centro da psique. o arquétipo do Self como indistinguível do arquétipo de Deus. O Self seria o correspondente psíquico ao que as religiões chamam de Deus.

A energia que emana do Self é tão forte que o encontro com esse arquétipo constitui a experiência mais intensa e mais profunda que o homem pode vivenciar.

A essa experiência, carregada de qualidades a um tempo terríveis e fascinantes, o homem chamou Deus (Nise da Silveira).

… para o hindu é evidente que o si mesmo não se distingue de Deus , como fonte psíquica , e que o homem , por se achar em seu si- mesmo , não apenas está contido em Deus , como também é o próprio Deus (Jung).

Na velhice, se há declínio biológico, este é compensado por um grau muito maior de conhecimentos e experiências adquiridas. Nosso roteiro já está bastante enriquecido, tanto em sonhos como também em frustrações . No entanto, o poder de animar todas as estações da vida é um potencial que vive dentro de cada ser humano. A cada um vai caber fazer opção entre o fracasso e o sonho; entre ficar repetindo o passado, se perdendo em lembranças, ou redescobrir o processo existencial de uma forma positiva.

A velhice possui sua própria luminosidade.

Assim a idade avançada é uma limitação e um estreitamento e, no entanto, acrescentou tanta coisa em mim: plantas, animais, nuvens, o dia e a noite e o eterno no homem.

Quanto inseguro tenho me sentido a respeito de mim mesmo, mais tem crescido em mim um sentimento de parentesco com todas as coisas.

Sim, é como se esta estranheza que há tanto tempo me separava do mundo, tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo (Jung).

A arte é um instrumento essencial para o desenvolvimento humano , daí seu efeito terapêutico . A arte auxilia os indivíduos a lidar melhor com seus conteúdos internos, estabelecer seu equilíbrio emocional, encontrar sua própria linguagem expressiva e exorcizar seus demônios e também assimilar o numinoso. Estas imagens se despontecializam ao serem concretizadas em produções artísticas.

A utilização de materiais variados facilita a entrada em contato com conteúdos inconcientes e experiências ainda da fase pré-verbal ou mesmo mais primitivas ou coletivas, de modo a permitir a elaboração desses conteúdos.

Nesse momento da vida o homem vai tendo mais noção de seu pertencimento ao todo, de parentesco com todas as coisas. Essa noção de natureza profunda traz a noção da responsabilidade do homem.

A Arteterapia, como um processo terapêutico com amplas e diversificadas formas de atuação, contribui para que esse momento da vida seja vivenciado de forma recompensadora. A Arteterapia, ao ser capaz de abrir novos canais de comunicação que facilitam o acesso ao inconsciente por intermédio das múltiplas formas de expressão, criação, destruição e recriação com diferentes materiais, contribui para a integração do Eu ao possibilitar a constelação da energia cósmica em símbolos específicos deste ciclo, resultando numa compreensão mais ampla da vida.

Gosto de trabalhar com meus clientes que estão nesse estágio da vida, o conto “O Peixe Luminoso”. É um conto para além do eu, na segunda metade da vida, rumo à iluminação da sociedade. Allan B. Chineu diz que:

… a iluminação pessoal não constitui a meta final; abraçar ideais transcendentes da velhice e usá-los em benefício da nova geração, este é o papel da pessoa mais velha, como mediador, servindo de ponte entre esse mundo e o próximo.

No processo de crescimento, único para cada ser humano, várias etapas precisam ser percorridas e elas vão desde a preocupação meramente egóica até um outro patamar que implica na abertura para o social e transcendente.

Tendo reconhecido seu valor pessoal e tendo se apropiado de sua própria luz, o homem pode, então colocá-los a serviço de um benefício coletivo.

Confrontando-se com aspectos esquecidos do eu, relacionando-se com as perdas inevitáveis ao longo da jornada, mergulhando no inconsciente, encarando a própria sombra, o ser humano é capaz de corrigir rotas e de transcender.

Cada indivíduo pode viver o papel de mediador, revelando para o mundo suas descobertas, oferecendo o seu ouro alquímico para beneficiar a coletividade em que se insere.

Com a maturidade, o homem aprende a reconhecer que não poderá crescer sozinho, que faz parte de uma humanidade que por sua vez, faz parte de um cosmo, e que deve evoluir como um todo.

O conto italiano O Peixe Luminoso serve bastante bem como guia para reflexão sobre esse tema.

O PEIXE LUMINOSO

Há muito, muito tempo, um velho e sua esposa viviam numa casa junto ao mar. Com o passar dos anos, todos os seus filhos morreram, condenando o velho casal à pobreza e a solidão. O velho mal ganhava para viver, cantando lenha na floresta e vendendo-a na aldeia. Um dia, na mata, encontrou um homem de longas barbas.

— Conheço todos os seus problemas — disse o estranho — e quero ajudá-lo. — Deu ao velho uma pequena bolsa de couro e quando este olhou dentro dela, desmaiou de espanto: a bolsa estava cheia de ouro! Quando voltou a si, o estranho havia desaparecido.

Então o velho jogou a lenha fora e correu para casa. No caminho, começou a pensar:

— Se eu contar à minha esposa sobre esse dinheiro, ela vai gastá-lo todo — disse a si mesmo.

Quando chegou em casa, não mencionou nada à esposa. Em vez disso escondeu o dinheiro sob um monte de estrume.

No dia seguinte, ao acordar, o velho viu que a esposa havia preparado um esplêndido desjejum, como pão e chouriço.

— Onde você arrumou dinheiro para tudo isto? — perguntou à esposa.

— Ontem você não trouxe lenha para vender — ela disse –, de forma que vendi o estrume para o fazendeiro lá de baixo. — O velho fugiu, gritando desolado. Então, tristemente, foi trabalhar na floresta, resmungando consigo mesmo.

No fundo da mata, encontrou novamente o estranho. O homem das longas barbas riu.

— Então deu ao velho outra bolsa cheia de ouro. O velho correu para casa, mas no caminho de novo começou a pensar.

— Se eu contar à minha esposa, ela vai esbanjar esta fortuna … — E ele, então, escondeu o dinheiro na lareira, sob cinzas.

No dia seguinte, ao acordar, viu que sua esposa havia preparado outro delicioso desjejum. — Como você não trouxe lenha, eu vendi as cinzas para o fazendeiro lá de cima.

O velho correu para a floresta, arrancando os cabelos de desespero. No fundo da floresta, encontrou o estranho pela terceira vez. O homem de longas barbas sorriu tristemente.

— Parece que você não está destinado a ser rico, meu amigo — disse o estranho –, mas ainda quero ajudá-lo. — Deu ao velho uma grande sacola. — Pegue estas dúzias de rãs e vá vendê-las na aldeia. Então use o dinheiro para comprar o maior peixe que encontrar — nada de peixe seco, moluscos, chouriço, bolos ou pão. Apenas o maior peixe! Dizendo isso, desapareceu.

O velho correu à aldeia e vendeu as rãs. Com o dinheiro na mão, viu coisas estupendas que poderia comprar no mercado e achou peculiar o conselho do estranho. Apesar disso, decidiu seguir as instruções à risca e comprou o maior peixe que encontrou. Voltou para casa muito tarde para limpá-lo, de forma que o pendurou do lado de fora da casa, nos caibros do telhado. Então ele e sua esposa foram dormir.

Naquela noite, caiu uma forte tempestade e o velho e a mulher podiam ouvir as ondas reboando nos penhascos sob sua casa. No meio da noite, alguém bateu à porta. O velho foi ver quem era e deu de cara com um grupo de jovens marinheiros, dançando e cantando à estrada.

– Obrigado por salvar nossas vidas! – disseram o velho.

– Do que estão falando? – ele perguntou.

Então os pescadores contaram que haviam sido surpreendidos no mar pela tempestade e não sabiam para que lado remar, até que o velho acendeu uma luz para eles.

– Uma luz? – perguntou. Então eles mostraram. E o velho viu seu peixe pendurado no caibro, brilhando com uma luz tão forte que podia ser vista a milhas ao redor. Desse dia em diante, o velho, todas as noites, pendurava o peixe para trazer os jovens pescadores de volta, e eles dividiam o produto de sua pescaria com ele. E assim ele e a esposa viveram confortavelmente e gozando de grande estima até o fim de seus dias.

No meu trabalho com grupos de alunos mais velhos, após ler esse conto, faço uma vivência co Arteterapia: dou um pedaço de papel para cada participante (esse papel é cortado como parte de um quebra cabeça), e ofereço vários papéis picados coloridos, purpurina, cola colorida e outros materiais; e peço que cada um represente nesse papel sua luz. Depois apresento um peixe grande feito de isopor, e eles vão colar seus pedaços de papel agora enfeitados, ou seja. sua luz, sua iluminação pessoal, e formando uma luz coletiva, o peixe luminoso do grupo.

Esse trabalho se propõe a levar as pessoas a refletirem sobre a possibilidade de transcender o eu em benefício do coletivo.

A importância dessa mudança da energia do herói para a do velho sábio, trazendo uma percepção do todo, e do sentido da vida, é retratada por Jung no seu livro “A Natureza da Psique”, onde ele diz:

A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim. Tanto uma coisa como a outra significam não querer viver. E não querer viver é sinônimo de não querer morrer. A ascensão e o declínio formam uma só curva.

Ordinariamente nos apegamos ao nosso passado e ficamos presos à ilusão de nossa juventude. A velhice é sumamente impopular. Parece que ninguém considera que a incapacidade de envelhecer é tão absurda quanto a incapacidade de abandonar os sapatos de criança que traz nos pés.

Um jovem que não luta nem triunfa perdeu o melhor de sua juventude, e um velho que não sabe escutar os segredos dos riachos que descem dos cunes das montanhas para os vales não tem sentido, é uma múmia espiritual e não passa de uma relíquia petrificada do passado.

Se atribuímos uma finalidade e um sentido à ascensão da vida, porque não também ao seu declínio.

Para o Cristianismo e o Budismo, o significado da existência se consumia com o seu término.

A própria natureza se prepara para o fim … é tão neurótico não se orientar, na velhice, para a morte como um fim, quanto reprimir, na juventude fantasias que se ocupam com o futuro.

Nem todo jovem é um herói, nem só os jovens são heróis, nem todo idoso é um velho sábio, nem só os idosos tem sabedoria. Mas com certeza é na segunda metade da vida, que se torna mais forte a busca do auto-conhecimento, do significado da vida e de pertencimento e responsabilidade no todo. E as pessoas que conseguiram, no entardecer da sua existência ter essa compreensão da vida, alem de idosos, também são velhos sábios; e com tranqüilidade, naturalidade e sabedoria, chegam à passagem final dessa vida, sabendo que cumpriram um ciclo, que realizaram sua missão.

A arte facilitando o encontro com o numinoso

OS QUATRO RABINOS

Uma noite quatro rabinos receberam a visita de um anjo que os acordou e os levou para a Sétima Abóboda do Sétimo Céu. Ali eles contemplaram a sagrada Roda de Ezequiel.

Em algum ponto da descida dos Padres, Paraíso, para a Terra, um rabino, depois de ver tanto esplendor, enlouqueceu e passou a perambular espumando de raiva até o final dos seus dias.

O segundo rabino teve uma atitude extremamente cínica: “Ah, eu só sonhei com a Roda de Ezequiel, só isso. Nada aconteceu de verdade”.

O terceiro rabino falava incessantemente no que havia visto, demonstrando sua total obsessão.Ele pregava e não parava de falar no projeto da Roda e no tudo aquilo significava…

E dessa forma ele se perdeu e traiu sua fé. O quarto rabino, que era poeta, pegou um papel e uma flauta, sentou-se junto à janela e começou a compor uma canção atrás da outra elogiando a pomba do anoitecer, sua filha no berço e todas as estrelas do céu. E daí em diante ele passou a viver melhor.

Quando nos deparamos com o numinoso , essa emoção é impossível de ser descrita. “ O contato com o mundo onde residem as Essências faz com que percebamos algo fora do conhecimento normal dos seres humanos e nos preenche com uma sensação de amplitude e de grandeza ”.

A experiência do arquétipo da divindade causa um impacto muito forte que o ego às vezes não agüenta.

Algumas pessoas saem feridas, outras subestimam a experiência, outras super valorizam a mesma, e poucas sobrevivem e conseguem exprimir esse encontro com Deus ou Silfo. A arte muito ajuda nessa última atitude. Através da arte podemos deixar essa emoção fluir e ser expressa. O trabalho expressivo oferece continente e também despotencializa essa energia tão forte que veio desse encontro com o numinoso.

Segue alguns trabalhos de clientes meus que expressaram plasticamente esse encontro com o numinoso.

Uma experiência pessoal

Embora eu não siga nenhuma religião, tenho uma fé enorme, um grande sentimento de religiosidade. E esse assunto me deixa bem sensibilizada.

No dia do meu aniversário, era um sábado. Desci para o play com meu filho. Estava descalça, perto da mata, sentindo o sol e o vento no meu corpo; meu filho do meu lado, ele botou a mão no meu rosto e disse: “ mãe, feliz aniversário, eu te amo ”. Por alguns instantes fui tomada de uma emoção muito forte. O sol, o vento, meu filho, eu pertencendo a um todo, o milagre da vida, a maternidade, Deus. Meus olhos se encheram de lágrimas, meu corpo parecia que estava levitando, eu não enxerguei mais essa realidade, eu só vi luz ao meu redor. Não dá pra descrever o que eu senti. Nada falei, não comentei com ninguém, e, assim como o quarto rabino da estória, usei a arte pra expressar minha emoção.

Peguei o pincel e comecei a pintar, primeiro com aquarela no papel, depois numa tela com tinta acrílica. Peguei o pincel, e deixei que a minha mão fluísse em sintonia com o que estava sentindo.

Depois, peguei a argila e deixei meus dedos modelarem, coagulando, concretizando a imagem.

Senti que Deus me deu esse momento de presente de aniversário.

Conclusão

No envelhecimento há um movimento de interiorização, de ida a regiões mais profundas do ser, buscando o Self e ou Deus.

O idoso, que estiver mais conectado ao Arquétipo da Sabedoria, aberto a essa busca, vai encontrar uma maneira de expressar esse divino de formas mais belas.

E nesse momento a Arteterapia trabalhando com processos pré-verbais, além de interiorizar esse mergulho no inconsciente, ajuda na expressão desses conteúdos, trazendo imagens de uma memória ancestral,

E se esse processo de intereza se der, a gente realiza no indivíduo a estória do homem, a coletividade, a totalidade.

Lígia Diniz

Psicóloga – CRP 19000

Arteterapeuta

Membro Fundadora da Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro

Pós Graduada em Psicologia Junguiana

Membro Trainée do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro

Bacheral em Artes Cênicas

 

Referências

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  POMAR – Revistas Imagens da Transformação. Rio de Janeiro: Pomar v. 5 – 1998.

SILVEIRA , Nise da – Jung: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

A UTILIZAÇÃO DA ARTE TERAPIA NA CLÍNICA INFANTIL
COM ABORDAGEM JUNGUIANA 

REVISTA IMAGENS DA TRANSFORMAÇÃO 
Nº. 11 – VOL. 10 – 2004. 



RESUMO:

Neste artigo apresentam-se as fases do desenvolvimento da criança na abordagem Junguiana e a utilização da arteterapia como facilitadora desse desenvolvimento.

ABSTRACT:

In this paper the child development steps, on the Junguian approach, are related to the facilitating power of art therapy in this process.

A UTILIZAÇÃO DA ARTE TERAPIA NA CLÍNICA INFANTIL
COM ABORDAGEM JUNGUIANA

Para Jung o desenvolvimento da psique parte de um estado original de indiferenciação. O inconsciente existe à priori, contendo todas as possibilidades e potencialidades do sujeito. Ao longo da infância a consciência vai se estruturando, diferenciando-se do inconsciente.

Segundo Neumman as fases de desenvolvimento do indivíduo repetem as da humanidade, as quais são representadas pelos mitos. Sua teoria é uma “releitura” do desenvolvimento humano comparando-o ao desenvolvimento da humanidade, se dá através de Ciclos Arquetípicos de Desenvolvimento, sendo estes considerados “evolutivos-estruturantes”, referindo-se: ”… a transformação progressiva da consciência”.

Assim, no que se refere à infância, os estágios do desenvolvimento da criança partem de um estado de indiferenciação total, observado nos mitos de Origem; passam pelo Matriarcado, onde prevalece o culto à Deusa ou à Grande Mãe e, posteriormente, chegam ao Patriarcado, ao culto aos deuses, ao despertar da Consciência. Seguindo essa seqüência, o sujeito chega à vida adulta, onde vivencia a Alteridade, caminhando rumo ao encontro com o outro até chegar à Dinâmica Cósmica, trazendo a consciência e a re-significação da finitude da existência humana.

A primeira fase do desenvolvimento infantil corresponde ao estágio ourobórico, sendo o ouróboros a representação mitológica da imagem alquímica do dragão que devora a si próprio; a serpente alada, que se engendra e engole a própria cauda.

A energia psíquica, nesta fase, movimenta-se num esquema circular fechado e a criança não tem a percepção de sua separação do outro. Trata-se do período inicial do desenvolvimento humano, abrangendo a fase intra-uterina e os primeiros meses do bebê (a que Neumann chama de Fase Embrionária Pós Uterina).

Neste período não há distinção entre eu-outro, mundo interno-mundo externo, nem diferenciação entre ego e Self. O mundo é, portanto, dotado de duplo sentido: não existe a noção de tempo. A criança vivencia a eternidade, estando num universo que a envolve e a contém, circunda, protege e nutre. Vive num mundo de potencialidade e possibilidades, onde tudo existe, mas nada tem forma, vivenciando o obscuro, o Caos, retratado nos Mitos de Origem.

Na Psicologia Analítica esta fase corresponde ao que na psicanálise se chama de Narcisismo Primário, ao estado ainda não objetal da personalidade infantil.

Tal fase

… caracteriza-se por um mínimo de desconforto e tensão e um máximo de segurança, e também pela unidade entre o eu e o tu, entre o Self e o mundo, se ao referenciarmos ao mitológico, pode ser considerada paradisíaca.

A segunda fase corresponde ao Dinamismo Matriarcal. A criança passa a reconhecer o TU – representado pela figura materna, que para ela é fonte de prazer. Apresenta dificuldades em aceitar interdições e seu comportamento visa o atendimento de suas necessidades básicas.

Enquanto imagem arquetípica, a Grande Mãe traz em si a bipolaridade. Tem tanto o poder de aquecer, sustentar, aconchegar, nutrir e proteger; como o de abandonar, possuir, devorar. Aqui se inicia o desenvolvimento da relação Ego-Self e seus distúrbios. A mãe, ou sua substituta, traz para a criança a possibilidade de transformar quando ao cuidar dela faz magicamente o frio virar aquecimento, o desconforto, conforto, a dor, prazer, a fome, saciedade, etc… A criança está neste momento totalmente susceptível à dor e ao desconforto – primeiros organizadores da consciência – necessitando que alguém outro lhe dê o que ela necessita para sua sobrevivência.

Assim, a disponibilidade ou não disponibilidade da figura materna para relacionar-se com a unidade bio-psíquica do filho é essencial para a formação inicial da criança, uma vez que a formação do Ego está diretamente conectada à experiência corporal, sendo o Self, neste período, totalmente corpóreo. Neumann ressalta o fato de que um distúrbio radical na relação primal pode conduzir à disfunção e à doença mental.

O mundo agora é vivido a partir de opostos que se complementam, uma vez que a realidade externa se apresenta de forma binária e ela pode sentir ora um estado e ora outro, mas ainda não é capaz de estabelecer uma diferença entre eles.

Aos poucos a criança vai criando a percepção de um envelope corporal, uma separação entre dentro e fora, eu e não-eu, vivendo através de seu corpo os limites de sua personalidade. Ocorre, então, um distanciamento progressivo entre a Consciência e o Inconsciente, a criança entra na Fase Patriarcal e começa a aprender a lidar com as normas, as regras, as leis, os deveres, as interdições; torna-se capaz de integrar sensações e observações passadas e presentes, adquirindo a capacidade de recordar-se e ligar-se ao meio em que vive. Adquire a noção de continuidade e passa a ter a memória de sua própria história, tendo noções de ontem, hoje e amanhã. Começa a fazer operações abstratas simples e conquista estágios iniciais de autonomia e independência.

A imagem arquetípica do Pai traz para a criança um lado ativo, prático e protetor; aquele que estabelece metas e faz planos para o futuro. Traz o lado funcional no plano material da realidade, no mundo real. A vida agora é regida pela ética, pelas normas, pelos valores, pelas tradições, pela moral, pelos deveres, pela temporalidade. A criança precisa adaptar-se ao universo cultural e social, que lhe exigem uma série de atitudes e comportamentos, condizentes com o meio externo.

Vale ressaltar, que antes da entrada no universo patriarcal, a criança já assimilou, através da relação primal, reações ativas e passivas de condutas, femininas e masculinas, através dos elementos femininos e masculinos da figura da materna. Pode, então, confrontar-se, agora, com a imagem arquetípica do Pai, vivida não mais como um aspecto inconsciente da figura materna.

A relação mulher-mãe com o mundo e com o homem (parceiro), é dominada pelo princípio de Eros (energia de ligação e processo criador), tendo em seu inconsciente o masculino representado por Logos (conhecimento racional) e Nonos (as leis, normas e tradições). Estes são inconscientemente passados para os filhos em sua maneira de ser e atuar para com estes.

O período do Patriarcado constitui grande parte da infância. É nele que a criança prepara-se para o ingresso na escolaridade formal propriamente, entrando no mundo dos matemáticos e da resolução de problemas.

No final desta fase, ocorre a saída da infância para a adolescência, caracterizada por interesses e alterações físicas e emocionais. Do ponto de vista simbólico, esse momento marca o início pela busca da Alteridade-caracterizada pela necessidade de reconhecer a si e ao outro, determinando as necessidades, os limites e as possibilidades de troca.

A criança, agora pré-adolescente, constela a Dinâmica do Herói, que constitui “ uma tentativa do Inconsciente em criar um modelo de Complexo do Ego ideal, que permanece em harmonia com as exigências da Psique ” . Caminha rumo à Alteridade, começando a tornar-se capaz de suportar a tensão de opostos, e considerar o lugar do outro, o que a levará à construção de sua individualidade e ao relacionamento com um outro, outro, diferente dos modelos parentais.

O desenvolvimento infantil centra-se nestas três primeiras fases: Ourobórica, Dinâmica Matriarcal e Dinâmica Patriarcal. Nelas o estado de dependência é nítido, tanto no que se refere à necessidade de proteção e cuidados, como à necessidade de ser orientado e conduzido no mundo.

Vale ressaltar que essas fases são acumulativas, estando o sujeito predisposto a contatar-se com sentimentos e sensações de cada uma delas em processos regressivos que levam a conexão com conteúdos primitivos que podem ser elaborados a partir de uma nova progressão energética.

Segundo Neumann o regente do desenvolvimento do sujeito nas diferentes etapas da vida, é o Self – Centro da Psique.

Ele chama de centroversão o movimento da psiquê rumo à totalidade, através dos movimentos de diferenciação e de integração. Em cada integração de um novo conteúdo, o Ego se diferencia do Self, tornando-se mais amplo, trazendo para a consciência um pouco da totalidade.

À medida em que a vida segue o seu curso, ocorre uma crescente tensão entre o sistema consciente do Ego e o sistema inconsciente do corpo. Tal tensão é a fonte de energia psíquica, que distingue os seres humanos dos demais animais.

Nas fases do desenvolvimento inicial, até a primeira metade da vida, o Self concentra-se na diferenciação.

Neumann afirma que “ os fatores mais importantes para a compreensão do desenvolvimento individual são a direção diferente e o efeito distinto da centroversão nas duas metades da vida ” .

O processo de diferenciação tem como marca a formação e o desenvolvimento do Ego. Nesta primeira fase, ocorre a centroversão a partir da totalidade atuante do Inconsciente, isto é do Self para o Ego.

Para ele, durante a infância, ocorre um período de “ ego-centração ”, que termina na puberdade. Não há nesta fase a consciência deste movimento, que é uma relação compensatória entre os dois sistemas: Consciente e Inconsciente. Isto é, o Ego não toma conhecimento da sua dependência com relação ao todo.

Quando chega a segunda metade da vida, que normalmente ocorre a partir de uma transformação psicológica da personalidade, surge no Ego a conscientização da centroversão. O movimento da psique, agora, foca a Individualização.

Trata-se de uma expressão do princípio criador/criativo que, na espécie humana, realiza as suas experiências novas no indivíduo portador do Ego, cuja peculiaridade, consiste no fato de ser o único complexo consciente, diferentemente de todos os outros. Ele tende a se assentar como centro da consciência, agregando a si e a outros, conteúdos diversos como conteúdos conscientes, visando como nenhum outro, a totalidade.

O Ego e a consciência são os órgãos da força inconsciente da centroversão, que cria a unidade e o equilíbrio no interior desta unidade.

Sua tarefa não se resume apenas à regulação do equilíbrio, mas apresenta um caráter produtivo, uma vez que faz parte da natureza do organismo não só preservar a totalidade e o seu status, com a ajuda de regulações compensadoras, mas também se desenvolver. Ou seja, progredir para totalidades mais complexas e maiores, no sentido de fazer o mundo experimentado e experimentável com que entra em contato, aumentar progressivamente.

A centroversão atua de forma a impedir que o Ego fique estagnado como órgão do Inconsciente, impulsionando-o a tornar-se cada vez mais o representante da totalidade.

Em busca de sua auto-regulação, a psique traz para a Consciência o movimento de Centroversão. Há uma constatação do processo de individuação e o Self é, então, experimentado como centro psíquico da personalidade. Neste percurso, o Ego é exposto a um processo um tanto doloroso que, começando no Inconsciente, permeia toda a personalidade.

… no fenômeno da segunda metade da vida, se chegaria a uma segunda fase do desenvolvimento pessoal da centroversão. Enquanto a sua fase inicial levou ao desenvolvimento do Ego e à diferenciação do sistema psíquico, a segunda leva ao desenvolvimento do Self e à integração do sistema psíquico. No processo de transformação, que segue o sentido oposto da primeira metade da vida, não ocorre, contudo, uma dissolução do Ego e da Consciência, mas, pelo contrário, uma ampliação por meio da ação auto reflexiva do Ego .

Assim, num primeiro tempo,

… a unidade do todo é mantida por processos compensatórios que a centroversão controla, processos com a ajuda dos quais o todo se torna um sistema auto-criador e em expansão.

Num estágio posterior, a centroversão se manifesta como um centro diretivo, isto é, como centro de consciência no ego e como centro psíquico no Self .

Sendo o Self o arquétipo central, a ele estão subordinados todos os demais dominantes arquetípicos.

Ele é denominado Self Corporal nos primeiros meses de vida da criança. Num primeiro tempo, o Self é experimentado num processo projetivo que tem como alvo as figuras parentais, daí, no dizer de Edinger , “ a fase inicial do eixo Ego-Si Mesmo pode ser idêntica ao relacionamento pais e filhos ” .

Já na visão de Fordham o Self é considerado como sendo, num primeiro momento, psicossomático. É o “ arquétipo originário da infância”, também denominado de Self Primal Original ” – uma unidade psico-física, ou a “ representação da totalidade da psique-soma ainda no estado germinal ” . Nele está contido todos os potenciais psicofisiológicos. Dele, tal qual a visão de Neumann , todos os Arquétipos brotam.

Na visão de Fordhan

O Self original ou primário da criança sofre uma ruptura radical ao nascimento, quando a unidade psique-soma é inundada por estímulos que dão origem a uma ansiedade prototípica. A seguir um estado de reestabilização se estabelece. Durante a maturação, seqüências de rupturas e reequilíbrios ocorrem. As forças motivadoras que garantem tais seqüências são chamadas de de-integrativas e re-integrativas .

Assim, há um estado uniforme de integração no Self Original, no qual tanto a Psique como o corpo, se desenvolvem através de deslocamentos das funções deintegrativas e reintegrativas.

À medida em que as seqüências deintegrativo-reintegrativo vão ocorrendo, os resultados de seu funcionamento se tornam estáveis e, enquanto a imagem corporal se forma – e com ela a percepção mais nítida do que está dentro e fora do corpo – desenvolve-se na criança a percepção de si mesma e do mundo exterior .

Para ele, há fortes indícios de que já na vida intra uterina essas seqüências se façam presentes, de forma que os períodos de atividade, de movimento do feto, seriam indicativos de deintegração. Já os períodos de inatividade, de sono,seriam de reintegração.

Para Fordham as percepções sensoriais, as sensações, são resultantes de um deintegrado do Self total, no qual todas as modalidades de sensações seriam distinguidas apenas de forma parcial, uma vez que o Self Primordial não pode ser representado, mas sim seus deintegrados. Somente a partir destes é que se pode fazer inferências a respeito do Self.

No nascimento o Self se deintegra no intuito de adaptar-se às mudanças externas. Logo em seguida, reintegra-se, no contato pele a pele com a figura materna.

Também na amamentação ocorreram novas deintegrações e reintegrações: ao tomar o mamilo na boca e começar a sugar, a criança vivencia a totalidade, projetando no seio o seu mundo total. Ocorre, então, uma deintegração, seguida por um estado de sono, onde ocorre a reintegração.

Como a amamentação, todas as experiências de cuidados com o bebê, como ser alimentado, tomado nos braços, afagado, banhado, limpo e trocado, admirado, assim como as sensações boas e ruins que chegam estão vinculadas diretamente a ação do adulto para com ele, bem como a sua experiência exploratória do mundo (olhar ao redor, evacuar, urinar), tudo isso leva a processos deintgrativos, seguido de reintegração, pois colocam em ação os sistemas sensórios e motores, fornecendo material para o crescimento do Ego.

Fordham enfatiza a importância da figura materna, que ao cuidá-lo, relaciona-se diretamente com o seu Self, reconhecendo-o através de sua identificação para com ele (identificação projetiva).

Aponta também para a forma como a criança se apropria do que recebe, colocando que desde sempre a criança reage à figura materna, identificando-se e interagindo com a mãe, na projeção de partes suas, que depois serão por ela introjetadas e assimiladas.

AS FASES DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL E A UTILIZAÇÃO DA ARTETERAPIA

No trabalho com crianças, torna-se indispensável observar, avaliar e diagnosticar qual momento do desenvolvimento psicológico corresponde ao comportamento apresentado pela criança.

OURÓBOROS:

Em psicoterapia as crianças nesta fase são bebês ou aquelas que apresentam um grande atraso no seu desenvolvimento global: sensorial e motores.

O trabalho focaliza o universo sensorial enfocando a Estimulação Essencial. As atividades utilizadas envolvem técnicas diversas que levem ao conhecimento e à consciência corporal. Pode-se citar aqui percursos de massagem – entre as quais destacam-se a Massagem de Borboleta, de Eva Reich e a Shantala – e o toque. Pode se utilizar aqui óleos essenciais e trabalhar com aromas diferentes, observando seus diferentes potenciais e a demanda do bebê.

O trabalho em cima de rolos de espuma, plásticos ou com panos que permitem o balanceio e o deslocamento, também são interessantes. A água, a diferentes temperaturas, também é bastante interessante neste momento, uma vez que provoca diferentes sensações corpóreas.

O uso de músicas pode acalmar ou excitar a criança, pois a música atua a nível inconsciente, causando diferentes reações. Há grande interesse em caixinhas de música e em objetos que produzem sons ao serem manuseados, como o chocalho, guizos e sinos.

No contato com brinquedos, a criança leva-os à boca. É interessante ter mordedores de diferentes formatos, que possibilitem também a exploração de temperaturas diversas.

Durante o primeiro ano de vida, o próprio corpo constitui um elemento de brinquedo. É interessante levar a criança a sentir diferentes texturas no seu corpo. Ela se interessa por cores, formas, escutar sons e canções, apalpar objetos. Mais para o final dessa fase, a criança começa a controlar seus movimentos, coordenando-os com a visão. É interessante ter bolas e brinquedos que rolem, trazendo a possibilidade de criação de vínculo e do olhar.

Ela agora produz sons, balbucia e repete seus próprios sons. Ritmos feitos com instrumentos podem ser utilizados para chamar a atenção da criança ou para acompanhar algum movimento espontâneo.

DINÂMICA MATRIARCAL

A entrada nesta fase tem como marco o início do processo de diferenciação eu-outro. Como na fase anterior, o próprio corpo é um elemento de brinquedo e de prazer, a pintura sobre o corpo, a experimentação de texturas, a água com temperaturas diferentes são também utilizadas. O uso de massagens continua sendo bastante indicado.

A criança agora passa a arremessar os brinquedos ao chão, para em seguida recuperá-lo, através das mãos do adulto, experimentando a possibilidade de perder e de recuperar o que ama. Mais tarde, com o deslocamento no espaço, primeiro engatinhando e depois através do andar, ela amplia seu campo de ação, possibilitando aproximar-se e afastar-se voluntariamente dos objetos que deseja. Agora ela própria pode esconder-se e aparecer, entrar e sair por detrás de objetos. Os túneis de panos em cores claras lhe são bastante atraentes, pois pode entrar de um lado e sair do outro, reencontrando assim o seu meio e o adulto que a aguarda.

Mais tarde, uma nova descoberta modifica sua interação com os brinquedos. Ela percebe que algo oco pode conter objetos. Descobre o entrar, o receber, o unir e o separar. São brinquedos apropriados: argolas, brinquedos de borracha, bonecos de bichinhos que fazem sons aos serem manuseados, bonecos e brinquedos de corda que se deslocam sozinhos produzindo ou não sons, bonecos e bichinhos tipo almofadinha, bolas de pano, macias e coloridas, cubos plásticos, tapetes emborrachados, jogos de encaixe grandes, blocos de construção grandes e leves macios ou emborrachados, túneis feitos com bambolês em tons claros, caixas e potes fáceis de abrir que escondam algo dentro, tamborzinho plástico.

Os primeiros contatos com materiais de artes plásticas podem acontecer nesta fase. Neste momento, ainda não há a consciência de que o lápis deixa um risco na superfície, de forma que a criança brinca com este, mas sem a consciência do risco e do traço. Mesmo quando lhe é dado um espaço específico, ela sai do papel. Sua primeira forma de desenho denomina-se Garatuja Desordenada. Inicialmente observa-se traços para todas as direções. Ainda não há noção do campo total do papel. É comum o traço se expandir tanto que sai do papel. Daí ser importante dar a criança folhas grandes.

Crianças com idades mais avançadas que ainda estão fixadas a esta fase, plasticamente, encontram-se na fase de Garatuja Desordenada, quando ainda não há uma consciência do material plástico e do risco deixado sobre as mais variadas superfícies.

No final desse estágio, no desenho, a criança já é capaz de controlar seu movimento, buscando limitá-lo ao tamanho do papel. Ela tem a consciência de que o lápis deixa um traço sobre a superfície e experimenta este movimento das mais diversas formas. Suas garatujas representam, então, uma nova qualidade. Passa para a fase da Garatuja Controlada.

Ao utilizar tintas, a criança preocupa-se em espalhá-la, cobrindo a superfície com as cores. Posteriormente, a criança passa para a fase de Garatuja Identificada. Pode-se perceber nitidamente a entrada nesta fase, observando a criança a falar de seus desenhos, atribuindo nomes às suas garatujas.

Com o passar dos tempos, a criança usa diferentes tipos de movimentos em suas garatujas e, quando desenha, fala e conta histórias, embora sem ligação visual. A criança explica seu rabisco de várias formas.

No final desta fase, aparecem, então, as primeiras linhas circulares, que são movimentos executados com todo o braço. Surgem, então, espirais e caracóis, que nascem de dentro para fora e de fora para dentro.

A criança agora desenha a sua primeira forma: o círculo, marcando a percepção de si como ser independente, visto que “ … a forma é a expressão externa de um significado interno ” . Símbolo do Self, o círculo representa a totalidade psíquica. Trás nessa representação a noção de continuidade, estabilidade e moviment

.No uso de tintas, seu propósito é deixar marcas, as quais pode ou não atribuir algum significado. As técnicas de criação de carimbos com tintas são bastante apreciadas pelas crianças neste período. O interesse maior é carimbar diferentes suportes e o próprio corpo. Muitas vezes a criança tem interesse em se pintar e gosta imensamente de passar a tinta em seu próprio corpo.

Neste período, o trabalho com artes plásticas em psicoterapia envolve alguns materiais convencionais, como: papéis leves e grandes, em diferentes formatos e texturas; lápis tipo tijolinhos de cera ou giz de cera grossos e gordos; tintas fluidas, laváveis, vivas e não tóxicas, ou tintas confeccionadas com pigmentos naturais; papéis coloridos (para amassar, rasgar e colar); gravuras grandes, coloridas e de temáticas simples; sucatas grandes; pedaços de espuma grandes de diferentes formatos; retalhos de tecidos grandes; areia para manuseio ou colagem (caixa de areia – com ou sem água – ou cola colorida caseira).

Os materiais devem poder propiciar um contato estreito, podendo ser amassados, mordidos, colocados no próprio corpo, permitindo assim seu reconhecimento e ter seus significados e símbolos compreendidos através do movimento, da manipulação e de todos os canais sensoriais.

. As massas caseiras e comestíveis podem ser confeccionadas em diferentes níveis de plasticidade, de mais maleáveis para menos maleáveis, sendo mais indicadas do que a plastimóvel (massinha de modelar comum), que são tóxicas e duras.

As superfícies para a realização dos trabalhos plásticos devem ser grandes e amplas, não restringindo-se apenas ao papel. As crianças ainda necessitam bastante de um espaço gráfico (superfície) amplo.

No trabalho corporal, podem se introduzir objetos diversos que são utilizados na relação com o próprio corpo: caixas grandes, almofadas, bolas grandes.

No que se refere ao uso de histórias, a criança, no início desta fase, se prende ao movimento, ao tom de voz e não ao conteúdo do que é contado. Ela permanece atenta ao movimento de fantoches e objetos que conversam com ela. As histórias devem ser rápidas e curtas. O ideal é inventá-las na hora.

. A criança neste período necessita pegar a história. Quer segurar o boneco, agarrar o livro etc… Logo os materiais devem ser resistentes, para que possam ser jogados no chão, segurados pela criança, levados a boca e fáceis de serem manipulados, para que ela possa brincar com eles.

Os livros de pano e plásticos, são ótimos para serem manipulados. Estes devem ter somente uma única gravura por página, mostrando coisas simples que façam parte do universo da criança. Com a ajuda do adulto ela é capaz de nomear o que vê.

Posteriormente, prende-se a histórias curtas e rápidas, isto é, com pouco texto, um enredo simples e vivo, poucos personagens, se aproximando ao máximo das vivências da própria criança. Devem ser contadas com muito ritmo e entonação. Histórias de bichinhos, brinquedos, seres da natureza humanizados, são de grande interesse da criança.

Há também interesse pelas lengas-lengas (história de enredos de acumulação repetitiva, onde troca-se apenas uma palavra ou outra), que permitem a assimilação do conteúdo na repetição do texto.

O trabalho com música envolve a pesquisa dos gestos e dos sons. A criança poderá encadear gestos para produzir sons e ouvir música expressando-se corporalmente. A imitação natural ocorre espontaneamente, sendo muito importante para o desenvolvimento sensório motor e da linguagem falada. Envolve também a exploração livre de instrumentos musicais simples: chocalhos, tambores, guizos, violinha, xilofone, também despertam o interesse da criança e são fáceis de serem manuseados por ela.

Na atividade lúdica, tudo o que existe ao redor da criança tem vida para ela. Qualquer coisa é facilmente transformada em brinquedo. Bonecos e bonecas dos mais diversos materiais permitem a vivência do amor e dos maus tratos, possibilitando a representação da relação ente ela e as figuras parentais.

Destaca-se nesta fase as miniaturas do mundo adulto: mobílias do seu tamanho (telefone, fogãozinho, carrinho de boneca, bercinho, vassouras e rodas pequenos etc.); conjuntos de utensílios domésticos em miniatura resistente. É interessante ter bonecos com sexo marcado e representantes da família: pai, mãe, bebê, menino, menina, avô, avó.

DINÂMICA PATRIARCAL

As vivências terapêuticas nesta fase induzem ao reforço da identidade, à força, ao poder, à motivação, à capacidade e à coragem. Os jogos e brincadeiras corporais se dão na posição ereta. O corpo é disciplinado de acordo com regras e tipos de movimentos específicos.

Aqui há uma diminuição pelo interesse experimentação corporal, de forma que a criança não tem mais a necessidade de submeter ao próprio corpo os materiais e brinquedos que a rodeia, já sendo capaz de explorá-los de forma concentrada e minuciosa.

A criança necessita experimentar sua força e capacidade de ação no mundo. É interessante o uso de objetos que possam se usados para soltar a raiva e a agressividade, socando, chutando, batendo. O mesmo pode acontecer com as bolas que podem ser perseguidas, apanhadas, golpeadas, arremessadas, cair em buracos e cestos, passar entre balizas.

Todos os jogos de luta e combate fazem parte deste momento.

No uso do espaço, pode vivenciar obstáculos a serem ultrapassados, pelo salto, ou arrastando-se por baixo destes.

Neste período, a criança pode deter-se a um objeto para modelá-lo, pintá-lo, combiná-lo com outros ou transformá-los.

Consegue facilmente alternar funcionamentos como encaixar, colar, armar, construir, modelar, estabelecer estruturas, compreendê-las e transformá-las.

Na representação plástica, passa por várias fases.

Quando adentra o universo patriarcal, a criança adquire a noção de si mesma, passando a operar, interferir, representar, estabelecer analogias, semelhanças e diferenças. Torna-se capaz de extrair do fundo móvel de suas sensações elementos mais permanentes. Passa da ação em si à noção de si, da percepção indiferenciada à capacidade de emitir conceitos. Chega à fase Pré-Esquemática.

Aqui, junta-se ao movimento do círculo outras formas geométricas, trazendo o dinamismo (triângulo) e a instabilidade (triângulo apoiado sob uma de suas ápices); o equilíbrio e a imobilidade (quadrado, retângulo). Aparecem também as representações com duas perpendiculares: horizontal e vertical, posteriormente, as linhas oblíquas (ângulos).

Tais representações (diagramas básicos no dizer de Kellogg), somam-se ao círculo e vão se combinando e se agregando, superpõem-se, ora ficam dentro, ora fora, ora crescem, ora diminuem. Configuram as primeiras figuras representadas pela criança.

Trata-se da representação de formas soltas e dispersas no papel. A incapacidade de relacionar os elementos no espaço é típica desta fase. Seu desenho é realizado em etapas; parte por parte até formar uma figura. A criança, porém, consegue hierarquizar o espaço, dividindo-o e separando seus elementos.

O uso de formas concretas traz diferentes conteúdos que são constantemente modificados na mudança das formas representadas. Pode-se observá-los tanto na utilização de materiais lineares como no uso de tintas.

As relações de tamanho (pequeno e grande) e de posição (em cima, em baixo, no meio) são retratadas no espaço.

No trabalho com a modelagem, seja na utilização de argila ou de qualquer outro material, observa-se a bidimensionalidade: figuras que se apóiam na superfície, ficando “deitadas” sobre ela.

No que se refere a materiais plásticos, podemos destacar: giz de cera grande e grossos, giz de cera aquarelável, colas coloridas, tintas para pinturas a dedo, massa artesanal de modelagem, argila, papéis brancos (que podem ser reduzidos ao tamanho A3, papéis coloridos, gravuras, sucatas média à grandes, caixa de areia com miniaturas.

É interessante trabalhar com folhas grande verticalizadas, presas em parede ou em cavaletes.

Um pouco mais à frente, a criança aprimora suas formas e, passando para a fase Esquemáica.

Esta é marcada por uma tomada de posição frente o mundo exterior. A criança já tem um conceito próprio do que está ao seu redor, que será modificado por novas experiências.

Usa-se da realidade como ponto de partida para o imaginário. Isso se evidencia nos desenhos através de uma ordem definida do espaço.

O conceito definido da figura e do meio é representado através do “esquema puro”, que não expressa nenhuma experiência intencional. A riqueza do esquema, os detalhes, dependerão da personalidade de cada criança e da passagem pelas etapas anteriores.

Modifica a sua forma de desenhar, passando a representar um todo integrado, marcado pela continuidade da linha de contorno.

A ordem definida das relações espaciais é representada pela linha de base ou linha terra, simbolizando tanto a base onde as coisas são colocadas, como a superfície do terreno. Não é um símbolo rígido e também sofrerá mudanças devido a experiências emocionais. A criança pode trocá-la pela borda do papel, omiti-la ou desenhar mais de uma. Nesse caso, ela freqüentemente usa uma linha de céu para cada linha base. Esse recurso é muito usado quando ela expressa uma ação em movimento.

Aqui a criança vincula a cor ao objeto, de acordo com as convenções e organizações pré-estabalecidas.

Um recurso bastante utilizado neste momento é a Dobragem, quando a criança desenha de um lado e do outro da folha de papel ou pinta, fecha a folha e abre-a. Dessa forma expressa a visão de um lado e de outro da cena, colocando as figuras perpendiculares à linha de base, em oposição, fazendo com que algumas figuras fiquem de cabeça para baixo.

Também o desenho Raio X, onde se desenha o que imagina estar dentro de uma determinada forma, é bastante utilizado.

Na modelagem, surge a tridimensionalidade: formas que se apóiam sobre outra que se apóia na superfície.

Recortar, colar e sobrepor se adequam a este momento. Recortar é dar forma, requerendo coordenação motora e paciência. É interessante utilizar vários tipos de espessuras nos papéis para esta atividade, assim como tesouras com lâminas variadas.

Os materiais plásticos indicados para esse momento focalizam a expressão linear. Assim, utiliza-se lápis preto, borracha, pastel óleo, aquarelas, colas coloridas, tintas guaches, hidrocor, argila e massa artesanal de modelagem, papéis brancos A3, papéis coloridos, materiais diversos para colagem (naturais, sucatas, tecidos, barbantes, contas, purpurina etc.).

Agora a criança tem condições de criar junto, dividindo o espaço gráfico com outras crianças.

Com o desenrolar do desenvolvimento a criança não mais representa com base na observação visual, mas na realidade sentida e caracterizada por si mesma (chega ao Realismo). Já descobriu o seu meio, não sentindo necessidades de esquemas. ########

Plasticamente consegue conceber planos, sendo capaz de sobrepor as imagens (colocar uma sobre a outra).

Somente agora adquire consciência de superposição. Desenha, por exemplo, árvores que superpõem ao próprio céu, quando antes desenhava uma ao lado da outra.

A representação da figura humana agora é mais rígida. É enfatizada a diferença entre os sexos e há grande preocupação com as roupas. Os exageros e as omissões não são usados, mas as partes emocionalmente mais importantes aparecem carregadas de detalhes.

Aqui, Pode-se usar todos os materiais, mas deve-se evitar os que permitem a expressão linear, pois a criança tende a avaliar os resultados de sua criação, julgando-os pelo modo de desenhar adulto e, por vezes, não quer fazê-lo por não alcançar resultados semelhantes.

O guache e a têmpera preparados pela criança são excelentes, devendo ser apresentados em poucas cores para a descoberta de novos tons.

Nessa fase a criança gosta de colecionar coisas, o que deve ser aproveitado para estimular o contato com o formato, as cores, a textura, mesmo que por meio dos materiais da natureza e da sucata. Apreciam novos materiais como: a anilina, a aquarela, o papier marché, o pastel seco, o gesso.

A atividade plástica agora não é mais uma atividade espontânea. Há um maior desenvolvimento intelectual e uma crescente consciência crítica em relação a sua produção artística.

Assim como nas Artes Plásticas, a criança percorre na Dinâmica Patriarcal diferentes fases tanto no brinquedo, como nos demais canais expressivos.

No trabalho com contos e histórias, já há um maior desenvolvimento da linguagem e, à medida que a criança cresce, esta se torna cada vez mais evoluída, de forma que a criança tem sua capacidade de reter a atenção aumentada e solicita enredos cada vez mais elaborados.

As histórias inicialmente devem ter poucos personagens e serem de fácil entendimento. Há ainda muito interesse por histórias com músicas e de repetição acumulativa. As gravuras ainda devem ser grandes e com poucos detalhes.

Histórias com dobraduras simples que a criança possa acompanhar, também exercem grande fascínio. Outro recurso que prende muito a atenção é a transformação do contador de histórias com roupas e objetos característicos criança acredita que o contador de histórias realmente se transforma em personagem com a colocação de uma máscara, óculos, chapéu etc..

Posteriormente, perto dos sete anos, a criança ou está aprendendo a ler ou ainda não possui um bom nível de leitura, interessando-se pelas histórias contadas na fase anterior.

Já não há necessidade de pegar a história, ela se contenta em apenas VER.

Gosta de visualizar o que é dito e observar gravuras bem feitas em livros, flanelógrafos, cartolinas, quadro de pregas, sanfonas, cineminhas etc.. Acompanham bem quando o terapeuta desenha, faz dobraduras ou se transforma.

Nessa fase a criança se interessa por detalhes. As histórias devem ser mais extensas e descritivas. As gravuras bem elaboradas e detalhadas.

Mostram interesses por histórias com animais humanizados, encantamentos, aventuras no ambiente próximo (família, escola, comunidade).

Em torno de oito/nove anos os enredos mais elaborados e longos entretém a criança. É a fase da descoberta da piada e ela gosta de ouvir e contá-las. As histórias humorísticas e engraçadas exercem grande fascínio. As histórias em quadrinhos também são muito apreciadas.

Os recursos materiais já citados ainda são de interesse desta fase.

Quando entra na pré-adolescência a criança já mostra interesse em ler a história sozinha. Mas, normalmente prefere ouvir alguém contar e acompanha a história com grande interesse.

Os quadrinhos ainda são muito apreciados. Exigem muitos detalhes e um texto bem elaborado com diálogos e cenas bem descritas.

Às vezes mostram interesse por histórias que já conhecem, mas a novidade é sempre muito atraente. Consideram os fantoches bobos e infantis (a menos que estes sejam muito elaborados).

Nesse período começa a se interessar por temas ligados à realidade social, ficções fantásticas e grandes aventuras narrativas de viagens, explorações, invenções e fatos reais.

Os mitos, fábulas e lendas, também despertam o interesse. Não têm necessidade de ver a história, pois já conseguem imaginá-la com grande riqueza de detalhes. Gostam simplesmente de ouvir a narrativa, com vozes diferentes para cada personagens e entonação.

A criança inventa histórias com grande facilidade. E quando o faz, projeta algo de sua vida, falando de algum tema que é importante para ela.

Ao pedimos a criança para dar outro final, ou fazemos perguntas que a levem a continuar a história com um novo desfecho, estamos induzindo-a a repensar sobre a temática e a solução dada por ela para finalizar a história.

Quando damos outro final para a história da criança, estamos apresentando a ela novas soluções e possibilidades que às vezes não lhe ocorreram e que ela não consegue enxergar.

Algumas crianças ao invés de inventar uma história quando isso lhe é proposto, reconta uma história que leu, que alguém lhe contou ou que viu no cinema ou na televisão. A escolha da criança por esse personagem ou história, ocorre porque a atraiu de alguma forma e sempre ela reconta a sua versão, modificando algumas coisas. É importante sabermos tudo o que pudermos sobre os personagens e histórias que as crianças gostam e escolhem. Assim, podemos entender por que ela se identificou com eles.

Várias são as técnicas para ajudá-la nesse processo, tanto individual como coletivamente. Entre estas destacam-se: pedir para contar uma história para um desenho,. contar outra história com um livro ou gravuras,. dar outro final para a história,. dar os personagens e pedir para criar uma história com eles, contar uma história sobre um animal, objeto ou lugar,. contar uma história contendo determinado conteúdo,. falar sobre um lugar e pedir para contar uma história acontecendo ali,. criar uma história partindo de várias palavras dadas.

Uma outra técnica bastante atraente consiste em gravar as histórias que a criança conta para depois dramatizá-las e/ou conversar com a criança sobre ela, principalmente se o trabalho não se encerra no mesmo dia em que começou. Em geral, as crianças não têm dificuldades em inventar ou relatar histórias, mas não gosta de escrevê-las.

No trabalho com música, no início da Dinâmica Patriarcal, ainda há grande interesse pelos instrumentos de bandinha rítmica, assim como em brincadeiras com a utilização da música.

A criança aprecia a brincadeira de roda ou os jogos cantados. Estas desenvolvem a fala, a linguagem em geral, a coordenação motora, o esquema e a consciência corporal, a lateralidade, o equilíbrio, a orientação temporal e espacial, além de preservar a nossa cultura.

Há uma progressão no controle da voz. Participa com facilidade de jogos cantados simples. Interessa-se muito por dramatizar canções. Cria pequenas músicas durante as brincadeiras, cheia de conteúdos simbólicos.

Aos poucos passa a entoar mais facilmente e consegue cantar longas melodias inteiras. Reconhecendo e gostando de um extenso repertório musical

Um pouco mais tarde torna-se capaz de criar sonoplastias para histórias e peças com muita facilidade.

Próximo a pré-adolescência, gostam de trabalhar com bandas. Já conhecem e gostam de uma grande variedade de estilos musicais e começam a usá-los em suas atividades

Costumo associar música à histórias, pedindo para a criança escolher um fundo musical para uma história por ela escolhida, contada ou sugerida por mim. Também associo músicas a sentimentos e movimentos ou a forma de se expressar de um personagem. Muitas vezes, coloco uma música e peço que ela deixe chegar imagens a ela relacionadas e depois desenhe-a.

. A atividade lúdica vai se transformando a medida que a criança cresce dentro da Dinâmica Patriarcal. Ao entrar nesta fase, a criança ainda brinca imitando atividades que vivencia e conhece. Esse tipo de atividade lúdica é conhecido como jogos imitativos ou objetos de imitação.

Nesse período há interesse também por brinquedos de construção (blocos de construção, castelos de areia, jogos de encaixe etc.).É comum haver uma mistura entre aquilo que é considerado representativo e de construção (Exemplo: fazer um castelo de areia onde moram um príncipe e uma princesa).

Os brinquedos citados na fase anterior ainda despertam seu interesse. Observamos, porém, uma maior capacidade de simbolização. Por volta dos 6/7 anos, os jogos simbólicos começam a declinar. Ao aproximar-se mais do real, o brinquedo e o brincar acabam perdendo parte de seu caráter de deformação lúdica para chegar mais perto da imitação da realidade. As construções lúdicas começam a ordenar-se de forma coerente.

Em geral a criança sente necessidade de organizar o espaço da brincadeira, para depois iniciá-la. Pode, por exemplo, dividir o espaço do consultório colocando ali os cômodos da casa: quartos, sala, cozinha etc, com seus respectivos móveis.

Às vezes, este processo é utilizado como mecanismo de defesa no processo psicoterápico: a criança passa o tempo todo arrumando o espaço para iniciar a brincadeira, mas “não brinca”.

À medida em que se desenvolve, torna-se possível à criança comparar os resultados da brincadeira planejada com a ação, propiciando uma contínua busca dos meios que a tornem exeqüíveis. Paralelamente ao reconhecimento da realidade, o pensamento egocêntrico cede lugar ao comportamento social.

Por volta dos 7-8 anos, surge a possibilidade de utilizar o símbolo de forma coletiva. O símbolo partilhado, assim, coletivamente, transforma-se mediante a nascente possibilidade de cooperação em jogos de regras. O interesse principal passa a ser o social. Desenvolve a necessidade de entendimento mútuo no domínio de regras que passam a ser codificadas no relacionamento da criança que joga.

. Ela agora já é capaz de brincar em grupos. Está apta a obedecer regras e esperar sua vez.

Há uma certa divisão de sexos no brinquedo, pois meninos e meninas não se interessam pelos mesmos brinquedos.

Os meninos agrupam-se para jogos movimentados e as meninas são mais sedentárias, preferindo brincar, por exemplo, de casinha e escolinha. Pode-se atribuir tal escolha basicamente a influências de nossos padrões culturais

Com relação às regras, as crianças, nessa fase, compreendem que elas existem porque todos concordam com elas e podem ser mudadas se todos concordarem.

Os brinquedos que marcam a Dinâmica Patriarcal são os jogos, tanto os vinculados à área motora, como os ligados ao raciocínio lógico, pois trazem as regras e normas que devem ser seguidas.

Acrescenta-se aqui jogos variados, como: bingo, baralho, jogo da memória, baralho Mico-preto, quebra-cabeças, dominó de cores, números, operações matemáticas simples, letras, sílabas e palavras, forca, jogos de seqüência lógica, gamão, xadrez, ludo, dama, senha, jogo da velha, adivinhas.

Na área motora pipas, peteca, as Cinco Marias, bolas de gude, pular elástico, frescobol, dominó de pano com encaixe de botão, de pressão, de colchete, velcro etc.; alinhavos, sinuquinha.

Há interesse também em jogos que exigem maior movimento, como jogo de boliche, argolas, acertar a bola na boca do palhaço, pranchas de equilíbrio, jogos diversos com bolas entre outros.

Nos materiais citados acima, o grau de dificuldade vai se aprimorando, na medida em que o raciocínio lógico e o desenvolvimento motor aumentam.

O interesse pelas miniaturas aumenta bastante neste momento. A criança gosta de montar cenas com elas e se interessa bastante pelo trabalho com caixa de areia.

Outra atividade bastante interessante neste período, a construção de brinquedos simples pela própria criança com sucata, com a ajuda do terapeuta. Crianças nesta fase gostam de montar e desmontar coisas, construir e ordenar de novas formas.

No que se refere ao trabalho teatral há grande interesse em se fantasiar. A criança se utiliza de máscaras e fantasias para a criação e caracterização dos mais diversos personagens.

Neste momento basta fornecer à criança elementos para sua caracterização: roupas, objetos, fantasias, máscaras e maquiagem e acompanhá-la em sua própria produção.

Faz-se importante ressaltar que a escolha do personagem e sua forma de atuar, por si só já falam de sua vivência e emoção.

Ao ser deixada livre para expressar-se, a criança imita aquilo que lhe é mais significativo, dramatizando situações que lhe são familiares (animais, pessoas, cenas cotidianas).

No uso de bonecos é interessante possuir uma variedade de bonecos para que a criança possa brincar e criar suas próprias histórias, permitindo uma rápida identificação com várias partes de si mesma: a parte boa, a parte má, a angelical, a raivosa, a regredida, a sadia. Assim, esta poderá resolver conflitos internos, equilibrando e interligando muitos aspectos de si mesma.

Os fantoches e bonecos levam a criança à descoberta de inúmeras potencialidades da voz.

No trabalho com grupos de crianças, a técnica do Psicodrama Pedagógico trás a delimitação física – espaço protegido para se mergulhar no personagem – e a delimitação da ação – congelamento da cena.

Ao mesmo tempo permite a livre criação na atuação. Embora escolha-se previamente os personagens, após caracterizado, este pode ser interpretado da maneira que o sujeito quiser. Ações e falas inesperadas são marcadas pelo diretor da cena (facilitador ou terapeuta), mas deixa-se ao sujeito a escolha de manter-se no personagem ou alterá-lo, trazendo o inesperado para o grupo.

Vale ressaltar que o pré-adolescente gosta bastante de trabalhar com RPG, que é um jogo que trás um extenso processo de criação de personagens e situações. Estes também podem ser adaptados e explorado cênica e plasticamente, trazendo muitos materiais que podem ser analisados e remetidos às necessidades e à história da criança que os criou.

No trabalho com máscaras, pode se utilizar de máscaras prontas de diferentes modelos e materiais. Cabe à criança escolher com qual deseja trabalhar. Aqui a escolha implica num processo psíquico de aceitação e recusa. Conteúdos são projetados sobre as máscaras e, de acordo com estes, algumas fascinam e outras causam profunda repulsa. Tal escolha pode se dar tanto para uma proposta de construção de personagem, encenação, expressão corporal, imaginação ativa ou escrita espontânea.

A construção da máscara para o jogo teatral é também bastante apreciada. Esta pode ser feita com massa de sabonete, papier marché, biscuit, papelão, entre outras. É interessante focalizar a escolha e a construção da máscara para a representação de um determinado tema ou a que melhor se encaixe na vivência de uma situação prévia.

Dependendo das demandas trazidas, algumas técnicas são bastante interessantes com crianças após oito anos e pré-adolescentes: Confecção do Genograma (com máscaras, cores, objetos, animais etc.), Linha da Vida (com fotografias – principalmente com crianças pequenas, músicas – com pré-adolescentes, recortes de revista), Representação de Cena em Caixa de Areia, Construção tridimensional do espaço da casa em que mora e colocação dos respectivos familiares através de bonecos, Colagem de Fotografias da criança e de outro parente, com desenhos, histórias, músicas e colagem que caracterizem a relação, Criação de Personagens para histórias ou representações,- Maquetes, construções mais sofisticadas, Foto Simbólica: que se assemelha ao trabalho de escultura, que pode ser feita com miniaturas ou com a participação do núcleo familiar na sessão.

CONCLUSÃO

Na abordagem Junguiana, a criança passa por estágios de desenvolvimento, partindo de uma indiferenciação total, estado Ourobórico, seguido do Matriarcado, onde começa o processo de diferenciação eu- outro, chegando ao Patriarcado, ao despertar da consciência, onde a criança começa a assimilar as regras e começa seu convívio social.

A Arteterapia auxilia a criança a passar por estes estágios de desenvolvimento. A linguagem não verbal da Arteterapia tem acesso a esse mundo infantil, ajudando a criança a desenvolver seu universo sensorial, sua consciência corporal, sua capacidade de representação e construção. Desta forma a criança materializa seus conteúdos emocionais, confrontando-os e os fazendo interagir para, finalmente, internaliza-los, elaborando seu mundo interno e seu mundo externo.

 

LIGIA DINIZ

Psicóloga – CRP 1900-RJ

Arteterapeuta

Membro Fundador da Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro

Pós- graduada em Psicologia Junguiana

Membro Trainée do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro

Bacharel em Artes Cênicas

Facilitadora de Cursos de Formação em Arteterapia de Base Junguiana no Rio de Janeiro e em Porto Alegre

Facilitadora de Terapia Corporal em Biodança.

 

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A Criança Interior

Liga Diniz

Resumo

Esse artigo tem como objetivo mostrar a importância do arquétipo da criança divina a partir das noções básicas de psicologia analítica de C.G.Jung, e encontrando na arteterapia um meio facilitador da conexão com esse arquétipo.

Abstract

In this article I show how important is Jung’s basic archetypical notion of the divine child, and how to find in Art-Therapy one way to facilitate the connection  with this archetype.

“… Sem a criança, não existiria deus-pai nem deus-mãe. Sem o filho, obviamente, não existiria o ser humano. Por isso, porque o gênero humano significa existência, vida, e essa vida se inicia bem pequena, com mãozinhas e pezinhos minúsculos, e porque essa vida estabelece a união com Deus, e Deus criou a vida – à sua imagem, por isso a criança é divina.”  
Angela Waiblinger

O Arquétipo da Criança Divina

C.G.Jung, psiquiatra Suíço, criador da psicologia analítica, considerava a existência de três níveis da psique humana: a consciência, o inconsciente pessoal, o inconsciente coletivo.

A consciência aglomera pensamentos, palavras, lembranças, identidade, sensações, gestos, sentimentos, imagens, fantasias… Refere-se ao estar desperto e atento, observando e registrando tudo o que acontece no mundo que nos rodeia  e dentro de nós..Tem como função primordial situar o sujeito no tempo e no espaço, realizando todas as orientações e adaptações necessárias para possibilitar a relação que se estabelece na troca do sujeito com o meio físico e humano. Para que qualquer conteúdo psíquico torne-se consciente terá necessariamente de relacionar-se com o ego, que é o centro da consciência.

Inconsciente pessoal corresponde a “… uma camada mais ou menos superficial” (Jung, OC V.XVIII/2, 1159) de conteúdos, cujo marco divisório com o consciente não é tão rígido. Contém todos os conteúdos esquecidos ou reprimidos pelo indivíduo, deliberada ou involuntariamente. Estes se referem às experiências vividas, ligadas às disposições internas do indivíduo. Encontram-se também no inconsciente pessoal as percepções e impressões subliminares dotadas de carga energética insuficiente para atingir o consciente. Nele encontram-se os complexos “grupos de representações carregados de forte potencial afetivo, incompatíveis com a atitude consciente” (Jung, Vida e Obra; Nise Silveira – pág.73)

Inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique constituída pelos materiais que foram herdados da humanidade. No Inconsciente Coletivo encontram-se os arquétipos, formas estruturantes herdadas que é comum a todo ser humano embora se manifestem de maneira diferente de acordo com as culturas. Como exemplos de arquétipos são: o Herói, a Grande Mãe, do Pai, da Criança Divina, do Órfão, dos Irmãos Inimigos, entre tantos outros.

 O arquétipo da criança divina diz respeito a nossa criatividade, espontaneidade, essência, é o futuro em potencial. ”Um aspecto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro.” (Jung, OC V. IX/I, 278) 

“… a “ criança” é dotada de um poder superior e que se impõe inesperadamente, apesar de todos os perigos.A “ criança” nasce do útero do inconsciente,gerada no fundamento da natureza viva. É uma personificação de forças vitais, que vão além do alcance limitado da nossa consciência, dos nossos caminhos e possibilidades,desconhecidos pela consciência e sua unilateralidade, e uma inteireza que abrange as profundidades da natureza. Ela representa o mais forte  e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo”.(Jung, OC V. IX/I 289)

RESGATANDO A CRIANÇA INTERIOR

 Fui convidada para dar uma palestra e workshop numa universidade com a finalidade de falar sobre a criança interior e a importância de ativar a criatividade e espontaneidade no individuo e na sociedade.
A nossa saúde e a nossa criatividade esta relacionada com a forma com que lidamos com a nossa criança, não só a criança concreta, como a criança interior.
A criança é criativa. Resgatar a criança é resgatar o núcleo de saúde do indivíduo, e esse resgate de saúde do indivíduo tem repercussão na coletividade.
Utilizei-me então do conto “O velho que perdeu a verruga” como instrumento de trabalho para ilustrar esse assunto, pois este retrata esse resgate da criança interior.

  

O Velho que Perdeu sua Verruga

                               (Conto Japonês)

       Em tempos que já lá vão, um velhinho morava com sua esposa perto de uma floresta. Na juventude ele fora um belo rapaz, mas à medida que envelhecia, uma feia verruga cresceu-lhe na face, ficando, com a idade, cada vez maior. Durante anos, recorreu a médicos e magos e experimentou pós e poções, mas nada adiantou. Por fim resignou‑se com a verruga e tentava mesmo brincar a respeito.
         Um dia, o velho precisou de lenha para o fogo; foi então para as montanhas e cortou algumas achas. Fazia um dia fresco de outono e ele se sentia tão feliz que nem viu as nuvens se adensarem. Quando caíram as primeiras gotas, correu a procurar abrigo. Encontrou uma árvore oca e lá se escondeu, no exato momento em que irrompeu a tempestade. Trovões sacudiam as montanhas e raios cintilavam ao seu redor; ele, porém, estava seco e seguro. Depois de muitas horas, a tempestade amainou e o velho saiu de seu refúgio. Ouviu vozes à distância e pensou que seus vizinhos tinham vindo à sua procura. Mas quando viu do que se tratava, pasmou horrorizado ‑ uma horda de gnomos e demônios se aproximava!

          Mais que depressa, voltou para seu esconderijo na árvore, tremendo de medo. Os demônios chegaram e um dos gnomos ‑ o mais horrendo de todos e obviamente o chefe ‑ dirigiu‑se ao seu bando, dizendo com um gesto: ‑ Vamos dar uma festa aqui. ‑ Então o rei‑demônio acomodou‑se de costas para o velho, na frente da árvore oca. O pobre homem quase desmaiou de medo.
         Os demônios organizaram rapidamente um piquenique e começaram a cantar. O velho observava atônito ‑ nunca vira nada semelhante. Mas quando os demônios começaram a dançar, não pôde conter o riso. Eram desajeitados e deselegantes, e todos pareciam ridículos, dando coices para todo lado e caindo. Finalmente, o rei dos demônios com um gesto ordenou aos dançarinos que parassem. ‑ Vocês são ruins demais’ ‑ disse, se lastimando. ‑ Não existe ninguém aqui que saiba dançar bem?        
 Ora, o velho adorava dançar e sabia dançar muito bem. – Eu poderia ensinar‑lhes uns passos ‑ pensou consigo mesmo, mas não ousava revelar sua presença, temendo que os demônios o matassem. – O rei‑demônio tornou a perguntar se alguém sabia dançar e o velho conti­nuava dividido entre seu amor pela dança e seu medo dos demônios. O rei‑demônio perguntou urna terceira vez e o velho mandou seus receios às favas.
       Saiu da árvore e curvou‑se perante o chefe dos demônios. ‑ Eu sei dançar, meu senhor ‑ disse e começou a fazê‑lo. Os demônios ficaram escandalizados por terem um homem em seu meio, mas, bem logo, admiraram a arte do velho. Começaram a marcar o ritmo com seus cascos, acompanhando a música e alguns se juntaram ao velho. Por sua vez, o velho sabia que sua vida dependia de ele dançar bem, de forma que Pôs toda sua alma e todo seu coração em seus movimentos e divertiu‑se, realmente. Quando parou, o rei‑demônio aplaudiu e convidou‑o a sentar-se ao seu lado, oferecendo‑lhe um copo de vinho.

‑ Você precisa voltar amanhã para dançar para nós ‑ o rei‑demônio disse.

‑ Gostaria muito de vir ‑ respondeu o velho.

Um dos conselheiros do rei admoestou‑o. ‑ Não se pode confiar nos homens. Precisamos ficar com algo que nos dê certeza de que ele vai voltar. ‑ Infelizmente, o velho nada trazia de valor consigo.

‑ Bem, então ‑ o rei‑demônio disse ‑ vou ficar com isto como penhor ‑ e, estendendo a mão, agarrou a verruga do velho e arrancou-a com a facilidade de quem arranca um pêssego maduro. ‑ Trate de voltar amanhã ‑ ordenou, e todos os gnomos desapareceram.

O velho mal podia acreditar no que acontecera. Passou a mão pelo rosto e percebeu o quão suave ‑ e simétrico! ‑ estava. Ficou tão feliz, que foi para casa pulando, cantando ‑ e dançando ‑ durante todo o trajeto. A esposa, ao vê‑lo livre da verruga, mostrou‑se eufórica e ambos celebravam sua boa sorte.
Ora, o velho tinha um vizinho malvado e vaidoso que também tinha urna verruga e que nunca se cansara de procurar um tratamento para ela. Quando soube da celebração, foi espiar e ficou perplexo ao ver que a verruga do velho havia sumido. Este homem invejoso imediatamente perguntou o que acontecera e o velho lhe contou a história. O vizinho, então, insistiu para ir vê‑los, no dia seguinte, em lugar do velho.

          No dia seguinte, pois, o vizinho vaidoso rumou para as montanhas e encontrou a árvore oca, exatamente como o velho lhe dissera. E, sem sombra de dúvida, ao anoitecer, o bando de demônios apareceu.

‑ Onde está o velho que ia dançar para nós? ‑ o rei‑demônio perguntou. O mal vizinho rastejou para fora da árvore, tremendo de pavor.

– Aqui estou! ‑ disse e começou a dançar. Ele, no entanto, nunca havia aprendido a dançar; considerava a dança aviltante à sua dignidade de forma que apenas pulava de um lado para outro, agitando os braços. Ele achava que os demônios não iriam notar a diferença, porém o rei ficou ofendido.

 ‑ Mas que coisa horrível! ‑ o rei‑gnomo exclamou.

‑ Você não está dançando como ontem! ‑ Orei não atinara que estava tratando com outra pessoa porque, a seu ver, todos os humanos eram iguais.

‑ Não dápara agüentar! ‑ o rei‑demônio gritou, afinal. Vasculhou o bolso e encontrou a verruga.

‑ Olhe, devolvo‑lhe o penhor. Dizendo isso, atirou a verruga no homem vaidoso e esta grudou‑lhe no rosto.

         Depois, os demônios sumiram. Em pânico o homem vaidoso apalpou o rosto e não havia dúvidas: tinha duas verrugas, uma em cada face! Esgueirou‑se para dentro de casa
bem mais tarde da noite, e ninguém viu sua cara nunca mais porque, desse dia em diante, passou a usar um chapéu de abas largas, bem enfiado na cabeça.
        Quanto ao velho que perdeu sua verruga, ele viveu ainda tempo e dançava quando se sentia feliz. O que, na verdade, acontecia quase sempre!
          Esse conto japonês fala da reconquista que o velho faz da inocência da sua infância, ou seja, da sua criança interior.
           A verruga simboliza alguma feiúra interior, uma feiúra da vida adulta, pois ele não tinha verruga quando jovem.
          Ao dançar com todo seu coração pelo simples prazer de dançar, como uma criança brinca – com graça e espontaneidade, com inocência – ele perde sua verruga.
           Ao dançar com os demônios o velho manda às favas a racionalidade e a prudência, ele perde o medo; ignora a preocupação que adultos têm de parecer ridículo. Ele reencontra a sua criança.
         Encontrar nossa criança interior, ou seja, ativar o arquétipo da criança é ativar a espontaneidade, liberdade, futuridade, esperança, criatividade, perseverança.
        As pessoas que não estão conectadas com a sua criança não se arriscam, não são originais.
O que paralisa na vida é o medo.
         Quando o personagem do conto dança com os demônios, ele está rompendo com o medo. Ele desmistifica o medo.
         O medo nos circunscreve a um âmbito de vida muito limitado, muito fechado, onde vivemos muito aquém das nossas próprias possibilidades.
         E tendo uma vida empobrecida consigo mesmo, ela será empobrecida também com os outros, no seu âmbito de vida familiar, profissional e social.
        A saúde para Jung é sinônima de flexibilidade, que nada mais é do que o fluxo livre da libido (energia psíquica). E o medo é aquilo que articula a rigidez, a contenção, que é sinônimo da doença.        
        Uma sociedade rígida, paralisada, se torna uma sociedade repressora, crítica, limitadora.
        À medida que conseguimos confrontar as nossas barreiras do medo, os nossos arquétipos repressores parentais, culturais, então nós liberamos o fluxo da energia psíquica e permitimos que a nossa criança que foi reprimida se reencontre. Se essa criança for reencontrada, a espontaneidade, a criatividade é reencontrada. Pois com o surgimento da criança, surge a liberdade para ser criativo.
           Todos os sintomas sejam eles somáticos, psíquicos e/ou anti-sociais são frutos do aprisionamento da libido. Toda libido aprisionada pela sombra, pelo mar negro do inconsciente, forma os perigosos demônios do mal. A saúde, a criatividade, o bem estar social evidentemente estão ligados a essa liberação de energia.
   Para chegar a esse ideal, incontestavelmente, a arteterapia se coloca na vanguarda; pois a arte propicia a mobilização do sujeito com sua criança interna, seu Self, permitindo então a expressão e expansão de todo esse potencial que o arquétipo da criança contém.
A atualização do arquétipo da criança em qualquer fase da vida possibilita vincular todo esse potencial criativo.
       Essa energia que até então foi reprimida e que atua e se atualiza em alcoolismo, consumismo, sexo compulsivo, drogas, etc., vai fazendo um deslocamento de sua atuação pelo negativo através das adições, para o pólo positivo criativo.
       A criança é antes do seu estágio verbal essencialmente imagética e motora. Utilizando a arteterapia que usa as imagens, o corpo, a música etc.. Podemos nos conectar com esses estágios de desenvolvimento psíquico mais original, primeiros e mais espontâneos. E assim resgatar nossa criança e com ela nossa criatividade.
       Ao se resgatar a criança interna de cada indivíduo, estamos possibilitando a revitalização do indivíduo, e conseqüentemente a revitalização da humanidade.

WORKSHOP E PALESTRA

          Nesse workshop  trabalhei a ativação do arquétipo da criança, ou seja, nosso potencial criativo.
          Começamos com um aquecimento físico, com alguns exercícios de integração de grupo, e exercícios para soltar o corpo e trazer a espontaneidade. Depois contei o conto. E a partir dessa idéia convidei as pessoas a “perderem sua verruga” se conectando com sua criança interna, com sua criatividade através da dança, do canto e da pintura espontânea.
         Para isso utilizarei exercícios de arteterapia que facilitam esse despertar da criança interior.
         Chamei os participantes a dançarem, ao som de tangos de Piazzola, música cigana e cirandas, onde eles dançaram sem se preocupar com certo, com critica  e sim conectadas com o seu desejo de  expressar livremente sua criança interna, vencendo o medo e se entregando ao simples prazer de dançar .E depois disso cantamos  cantigas de infâncias e músicas que expressavam sua emoção no  momento  e por último fizemos uma pintura espontânea  me utilizando da  pintura a dedo para que eles pudessem liberar plasticamente seus sentimentos. Sem usar pinceis usando diretamente os dedos e as mãos para melhor expressar essa criança interior. 
                  O workshop foi dado na parte da manhã e na parte da tarde a palestra.
                  No momento em que me sentei para começar a falar sobre o assunto, chegou em minhas mãos uma reportagem ,  sobre  uma homenagem que uma escola estava  fazendo à minha irmã “ Leila Diniz”, na  qual ela estava  sentada  rodeada de crianças brincando e cantado. Aproveitando essa sincronicidade resolvi incluir Leila na minha palestra. Citei-a como exemplo de um caso bem sucedido de alguém que se conectou com a criança divina, atualizando esse arquétipo, trazendo toda a sua essência, espontaneidade, criatividade e alegria de viver, de uma forma adulta e com autonomia em sua vida.  Leila com toda essa criatividade inovou o comportamento feminino no que diz respeito a maternidade, sexualidade e linguagem.
              É importante não confundir estarmos conectados com a criança divina com estar regredido na figura do “puer eternus”, onde o individuo não amadurece emocionalmente.
             Estes ficam presos de forma regredida à sua criança, por motivos diversos.  Outras pessoas se desconectaram de suas crianças e se tornaram adultos rabugentos, sênex. A Arteterapia auxilia as pessoas a saírem de uma ligação mórbida com sua criança para uma ligação saudável. Tendo sua criança interna como fonte de criatividade e encontrando sua essência. Assim o indivíduo vai se tornando cada vez mais ele mesmo, desenvolvendo o seu potencial no que Jung chamou de processo de individuação.

CASO CLÍNICO

Uma cliente, que vou aqui chamá-la de Maria, me procurou por ter um problema na fala, que lhe trazia desconforto e insegurança. Segundo seu relato sempre que ia falar em público, gaguejava. Esse sintoma surgiu quando criança, aos 6 anos de idade. Maria teve um pai e mãe muito rígida, que não lhe davam muito espaço para se expressar, nem para cometer erros, pois a puniam com muita dureza. Essas figuras paternas e maternas autoritárias e repressoras que Maria introjetou, a levaram a uma exigência interna de perfeição nos estudos, no trabalho, e não se permitindo ter prazer, até nos fins de semana ela tinha tarefas do trabalho para fazer em casa. Tinha dificuldade de se divertir, pois se sentia culpada. Suas primeiras imagens na terapia mostravam toda a sua rigidez: lápis de cor arrumados enfileirados (figura 1), soldados em fila. Maria associava a essas imagens seu gosto por tudo organizado.

 

Ao criar um cenário na caixa de areia. Maria coloca no centro da caixa uma boneca presa na rede, deixando claro que a sua criança está sem poder se expressar, aprisionada (figura 2). Pedi que fizesse uma colagem contextualizando a sua infância. Na colagem mais uma vez surge essa criança amarrada e presa (figura 3).

Sempre que ia se expressar plasticamente, escolhia lápis de cor ou grafite, materiais que são fáceis de controlar. Fui, então, oferecendo-lhe materiais mais fluidos, comecei com lápis aquarelado, que ela começava de uma forma mais rígida desenhando, depois molhando o pincel ela ia dissolvendo um pouco essa forma. Usamos aquarela, ecoline, pastel seco, materiais que não permitem muito controle. Foram surgindo, a princípio, imagens de grades (figura 4), depois grades se dissolvendo (figura 5), depois uma menininha (figura 6) e uma menina jogando bola (figura 7).                  

A série de imagens que foram aparecendo, estavam compensando a atitude unilateral, rígida e mental de Maria; mas também estava lhe mostrando um caminho, uma postura diferente da sua atitude consciente até então. Maria, após um tempo, começou a jogar vôlei depois do trabalho, esporte que praticava na adolescência. Parou de levar trabalho para casa nos fins de semana. Passou a usufruir os seus dias de descanso, indo à praia, indo ao cinema com seus filhos e seu marido. No mês passado entrou para uma academia de capoeira. Segundo Maria, capoeira sempre foi “coisa” do submundo, e ela agora queria vencer esse preconceito e experimentar algo totalmente novo na sua vida. Maria estava libertando a sua criança pouco a pouco.
Podemos perceber, através das imagens e da mudança de comportamento de Maria, que o inconsciente lhe orientou para uma direção diferente, buscando uma nova forma de atuação na vida, mais conectada com a sua criança interior.
Começa a surgir um vulto de mulher (figura 8). Depois um rosto de mulher com os cabelos soltos dando idéia de liberdade (figura 9). 

Fizemos uma nova caixa de areia, onde Maria já se coloca adulta montada num cavalo; nesse momento ela se mostra de posse da direção da sua vida sem perder  a magia e criatividade da sua criança, representada pela figura de Harry Potter na caixa (figura 10 ).

 Gostaria de ressaltar, que depois dessa mudança, Maria está se expressando com mais segurança, e não está gaguejando ao falar em público.
          Para finalizar lembro que para Jung a criatividade é de natureza semelhante à do instinto (OC Vol. VIII/2), um potencial inerente ao homem e que precisa ser realizado. Ao usar a arte no processo de individuação, estamos estimulando no sujeito a sua criatividade.
          A criança é criativa. Libertando a criança interior, ativamos a capacidade de inventar, de criar, de se expressar e de transformar. Aproximando o ser humano de sua essência, ajudando a colocá-lo em contato mais estreito com sua própria alma.         

LÍGIA DINIZ                          

Psicóloga – CPR 19.000 – RJ
Arteterapeuta;
Membro Fundador da Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro;
Pós Graduada em Psicologia Junguiana; 
Analista Junguiana, membro do instituto Junguiana do Rio de janeiro, da AJB (Brasil) e da IAAP (Zurique).
Bacharel em Artes Ciências;
Facilitadora de Cursos de Formação em Arteterapia de Base Junguiana no Rio de Janeiro e em Porto Alegre.
Facilitadora de Terapia Corporal em Biodança.

 

Referências Bibliográficas

Ammann, Ruth – A Terapia do Jogo de Areia –S. Paulo; Paulus , 2002 .

Chinen, Allan B. – E foram felizes para sempre – Contos de Fadas para adultos – S.Paulo; Cultrix ,1989 .

Downing, Christine (org.) – Espelhos do Self – S. Paulo; Cultrix , 1991 .

Jung, C.G. – Os Arquétipos e o Inconsciente coletivo- Obras Completas, vol. IX/I – R.J. Petrópolis: Vozes ,2000
________- O Desenvolvimento da personalidade, Obras Completa, vol. XVII Petrópolis – RJ: ed. Vozes , 1983 .
________- O eu e o inconsciente, Obras Completa, vol. VII/2 Petrópolis – RJ: ed. Vozes , 1984.

________- Vida Simbólica, Obras Completas, vol. XIII/2 , Petrópolis – RJ : ed. Vozes , 2000.

________- A Natureza da Psique, Obras Completa, vol. VIII/2, Petrópolis – RJ: ed. Vozes, 1991.

Ostrower, Faya – Criatividade e Processo de Criação – S. Paulo: Vozes , 1989.

Silveira, Nise da – Jung Vida e Obra – Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra , 1984.

Waiblinger, Ângela – A Grande Mãe e a Criança Divina – S. Paulo – ed. Cultrix ,1986.

Resumo do conto “Como um Velho Perdeu sua Verruga”, extraído da obra de Y. T. Ozaki, intitulada The Japanese Fairy BoIk (Tóquio: Tuttie, 1970); e Tales of Japan (Tóquio: Tuttie, 1965).

ARTE: LINGUAGEM DA ALMA

 

Ligia Diniz

 

            INTRODUÇÃO

 “A alma é o ponto de partida de todas as experiências humanas, e todos os conhecimentos que adquirimos acabam por levar a ela. A alma é o começo e o fim de qualquer conhecimento” (Jung OC V. VIII/2: 61).

A arte é a linguagem da alma. Jung revela um universo repleto de mitos, símbolos, sonhos, religiosidade, arte e alquimia.  Compreende o homem na sua totalidade e traz uma percepção de que a criação está dentro de nós e que, se quisermos conhecer o mundo, devemos mergulhar mais em nós mesmos. 
Se o processo analítico visa a “escutar” a alma de outrem, a arte é um veículo que torna essa “escuta” possível. Se visamos a compreender o social, um grupo de pessoas, devemos estar abertos às suas músicas, poemas, pinturas, danças e outras manifestações da alma. Tudo que se faz com arte se faz com alma. Através de expressão artística, realiza-se uma comunicação que está para além das fronteiras, que não precisa estar baseada restritamente no código verbal.
O verbal não transmite todos os conteúdos internos. Muito antes de o homem escrever, desenhava. A arte sempre foi uma função estruturante da consciência. Ao desenhar os bisões na caverna, por exemplo, o homem já vivia a formação de sua consciência. As mãos que marcam as cavernas pré-históricas já podem ser compreendidas como uma vivência de identidade. A arte, portanto, como a compreendemos, tem uma fundamental importância na trajetória humana, auxiliando o homem a estruturar seu “eu”, a lidar com seus medos, dúvidas e perplexidades frente ao desconhecido.

A arte possibilita tornar visível o que é invisível, valendo-se do simbólico. O numinoso pode ser expresso através dela porque, como postula Jung (OC V. VIII/2), o símbolo agrupa significados contrastados, daí a possibilidade de transcender através da arte, atingindo aquilo que a princípio figura como inatingível.
A arteterapia fornece suportes materiais adequados para que a energia psíquica torne visíveis símbolos em criações diversas. Esse processo colabora para a compreensão e resolução de estados objetivos conflitados, favorecendo a estruturação e expansão da personalidade através da criação.
A arteterapia, como um conjunto de técnicas e saberes, facilita este processo. Por arteterapia, entendemos qualquer tratamento psicoterapêutico que utiliza como mediações expressivas a música, a dança, o teatro e representações plásticas (pintura, modelagem, desenho, gravura, máscaras, etc.).
Portanto, a arte utilizada no espaço terapêutico, revela a riqueza inconsciente das pessoas. E, por ser uma linguagem simbólica, se torna um instrumento eficiente para acessar a alma humana. 
            Segundo Jung (OC V. VIII/2), a criatividade é um instinto humano. Ao usar a arte no processo de individuação e assim estimulando a criatividade, humaniza-se ainda mais o próprio homem, colocando-o em contato mais estreito com sua própria alma.

            O INCONSCIENTE 
Para Jung, a Psique (a personalidade total) abrange dois níveis: consciência e inconsciente. 
A consciência aglomera pensamentos, palavras, lembranças, identidade, sensações, gestos, sentimentos, imagens, fantasias. Comum a todo ser humano, ela se refere ao estar desperto e atento, observando e registrando o que acontece no mundo que nos rodeia e dentro de nós. Está diretamente ligada à história do indivíduo (Jung, 1962 :226) e sua função primordial é situar o sujeito no tempo e no espaço, realizando as orientações e adaptações necessárias para possibilitar a relação de troca entre cada um e o meio físico e humano ao seu redor.
Além de abranger todos os conteúdos não-conscientes, o inconsciente existe a priori e é a matriz pré-formadora da própria consciência. Jung afirma que “o inconsciente não é apenas um produto da repressão, mas o solo materno e criador da consciência” (Jung, OC V. XVIII/I, §1156), cujos conteúdos “…não consistem apenas de desejos incompatíveis mas, principalmente, de partes da personalidade até agora pouco desenvolvidas e inconscientes que lutam por uma integração no todo do indivíduo.” (Jung, OC V. XVIII/I, §1156). Presente nas funções instintivas mais importantes, fonte legítima das potencialidades do ser, origem da atividade criativa e artística, ele é nossa essência que nos irmana. Nascemos inconscientes e trazemos muitos conteúdos herdados dos ancestrais. 
“…embora uma criança não nasça consciente, sua mente não é tabula rasa; ela vem ao mundo com uma interioridade definida… O cérebro nasce com uma estrutura acabada, funcionará de maneira a inserir-se no mundo de hoje, tendo entretanto a sua história. Foi elaborado ao longo de milhões de anos e representa a história da qual é o resultado. Naturalmente traços de tal história estão presentes como em todo o corpo, e se mergulhamos em direção à estrutura básica da mente, por certo encontraremos traços de uma mente arcaica.” (Jung, OC V. XVIII/I, §84) 
Embora os produtos da mente inconsciente sejam ignorados, ela é bem maior que a psique consciente, que se restringe à percepção de poucos dados de cada vez – o resto é inacessível à percepção, como se observássemos através de uma fenda e só víssemos momentos isolados. O inconsciente é imenso e sempre contínuo, enquanto a consciência é um campo restrito de visão momentânea (Jung, OC V. XVIII/I). Jung (Silveira, 1984 : 71) compara a Psique a “um vasto oceano (inconsciente) no qual emerge pequena ilha (consciente)”. O Inconsciente é dinâmico, produz vários conteúdos, reagrupa outros já existentes e trabalha numa relação compensatória e complementar com a consciência.
Jung (OC V. XVIII/I) subdivide o inconsciente em dois níveis: um, o inconsciente pessoal ou psique subjetiva, refere-se aos conteúdos adquiridos durante a vida da pessoa; o outro, inconsciente coletivo ou psique objetiva, aos que estão presentes desde a concepção.
O inconsciente pessoal corresponde a “…uma camada mais ou menos superficial” (Jung, OC V. XVIII/2, §1159), sem um marco divisório muito rígido com o consciente e composto pelos conteúdos esquecidos ou reprimidos pelo indivíduo, deliberada ou involuntariamente, relacionados às experiências vividas; refere-se a comportamentos civilizados ou passíveis de aprendizado. 
Já o inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique, constituída pelos materiais herdados da humanidade, cuja existência não depende de experiências individuais. Aí estariam os traços funcionais comuns a todos os seres humanos, prontos para serem concretizados através das experiências reais.
No nível do inconsciente coletivo encontram-se os instintos e os arquétipos – formas estruturantes comuns a toda espécie humana, padrões de comportamentos coletivos, que se manifestam em motivos mitológicos nas mais diversas culturas e são o resultado do depósito de impressões deixadas por certas vivências fundamentais, repetidas incontavelmente através de milênios: registros de emoções e fantasias suscitadas por fenômenos da natureza; experiências intra-uterinas e as relações iniciais que se estabelecem entre mãe e filho; vivências da imposição do poder do mais forte sobre o mais fraco; vivências da relação de irmandade; encontros com o sexo oposto e relações estabelecidas entre ambos; vivências de situações-limite em que o risco de vida é iminente; situações de aborto, onde algo se inicia, mas não chega ao fim; percepções da temporalidade e das transformações corpóreas vividas em cada momento da vida; entre muitas outras. 
Os arquétipos também são compreendidos como disposições inerentes à estrutura do sistema nervoso, que geram representações sempre análogas ou similares, assim como os instintos – as pulsões herdadas. Compreendidos desta forma, são “padrões hereditários de comportamento psíquico”, revestidos de qualidades dinâmicas, tais como autonomia e numinosidade (Jung, OC V. XVIII/2, §116). “O arquétipo é a forma introspectivamente reconhecível da organização psíquica apriorística” (Jung, OC V. XVIII/I, §55).
Por serem estruturas vazias, os arquétipos são fôrmas que ganham formas através da imagem arquetípica e do símbolo que, ao contrário do arquétipo, é acessível à consciência. Os arquétipos em si, porém, são apenas possibilidades de imagem: “(…) uma imagem primordial só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo, no caso de tornar-se consciente e, portanto preenchida com o material da experiência consciente” (Jung, OC V. IX/I, §155). Tais imagens variam conforme a época, a etnia e os indivíduos, mas têm sua estrutura preservada, como no caso dos arquétipos do Herói, da Grande Mãe, do Pai, da Criança Divina, do Órfão, dos Irmãos Inimigos, entre tantos outros. 
Assim, toda a herança espiritual da evolução da humanidade, concentrada no inconsciente coletivo, renasce na estrutura do cérebro de cada indivíduo. Os padrões arquetípicos esperam o momento de se realizarem na personalidade; são capazes de uma variação infinita e dependente da expressão individual, mas exercem uma fascinação reforçada pela expectativa tradicional ou cultura. 
As percepções subliminares, os conteúdos da memória que não precisam estar sempre presentes na consciência e as lembranças reprimidas por nos trazerem evocações dolorosas fazem parte do inconsciente pessoal. Tais conteúdos podem surgir na Consciência a qualquer momento, não tendo emergido anteriormente “…devido à falta de intensidade e de conteúdos amadurecidos o suficiente para tornarem-se conscientes” (Jung, OC V. VII/I, §103). Aí também estão localizados os complexos.
Portadores de uma carga energética substancial, os complexos são feixes de conteúdos afetivos – sentimentos, lembranças, imagens, padrões de comportamento e atitudes pessoais – aglomerados em torno de um núcleo arquetípico que funciona como pólo energético, atraindo cada vez mais conteúdos referentes a ele. O complexo é dotado de energia própria e tende a formar uma pequena personalidade, com uma espécie de corpo e uma fisiologia particular (Jung, OC V. XVIII/I, §149)
Ao deparar-se com o conteúdo complexado, a consciência fica obscurecida, com sua orientação no mundo exterior e sua percepção do tempo e do espaço reduzidas. Isso se deve à autonomia de ação e desenvolvimento do núcleo complexado, que pode tomar a consciência, subordinando o ego; nesse momento, o indivíduo perde sua liberdade de ação e de pensar, pois passa a viver em função do complexo e tende a perceber o mundo a partir do universo complexado, constituindo uma espécie de possessão psíquica. Portanto, embora o complexo não seja negativo em si, seus efeitos podem ser.
A superação do complexo ocorre a partir da intensidade com que ele é vivido e da compreensão de seu papel nos padrões de comportamento e reações emocionais. Assim, a energia complexada pode ser liberada, possibilitando a integração de novos conteúdos à consciência, ampliando-a. Isso se dá quando alcançamos 
“…o centro (do complexo) diretamente, de qualquer ponto de uma circunferência, seja a partir de um sonho, do alfabeto cirílico, das meditações sobre uma bola de cristal, de um moinho de orações lamaísticas, de um quadro de pintor moderno ou, até mesmo, de um bate papo ocasional” (Jung, 1964, :28) 
Desse modo, o complexo, sendo um nó de energia, possibilita a movimentação da psique e acaba tornando-se um grande aliado do sujeito, impulsionando seu desenvolvimento psíquico. Os complexossão, portanto, verdadeiros motores da psique, que a impelem e vitalizam.
O inconsciente, para Jung, não é apenas reativo: ele também age, prediz, alerta, abre horizontes e elucida, sobretudo por meio de imagens. Contém tanto os resíduos ativos do passado quanto as sementes do futuro – e possui, portanto, uma função prospectiva, que Jung exemplifica referindo-se à sua própria história: “Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade” (Jung, 1962:19). 
A produção inconsciente antecipa uma nova fase do desenvolvimento da psique. Quando os sonhos e o fazer artísticos, por exemplo, apontam o rumo seguido pela energia psíquica, anunciam para o consciente o que está por vir; embora a consciência esteja alheia aos fatos, as situações já se encontram em incubação (Jung, OC V. XVIII/1, §472). Esse aspecto prognóstico demonstra que o conhecimento do Inconsciente é anterior à Consciência. 
A função prospectiva nos leva a transcender o momento presente e vai criando condições para que se desenvolvam no consciente conteúdos existentes no inconsciente, mas ainda desconhecidos da consciência. Eis aí a base do método de amplificação criado por Jung, que, por meio de associações a partir dos conteúdos emergentes nos sonhos, em fantasias espontâneas ou dirigidas e no fazer artístico, possibilita novas ligações com as vivências gravadas no inconsciente coletivo, sem vínculo direto com a experiência pessoal.

OS SÍMBOLOS E A ARTETERAPIA
Para a psicologia analítica, todo e qualquer objeto pode se revestir de valor simbólico, seja ele natural/concreto ou abstrato. Diferente de um sinal (que encerra em si um significado dado) ou de uma alegoria (uma figuração que pode tomar a forma humana, de um animal, de um vegetal, ou mesmo de um feito heróico, de uma virtude etc.), o símbolo traduz algo que nenhuma palavra pode exprimir. 
Jung define o símbolo como o “termo que melhor traduz um fato complexo e ainda não foi claramente apreendido pela consciência” (Jung, OC V. VIII/2, §148). É a chave de um mistério, o único modo de se dizer aquilo que não pode ser apreendido de outra forma; ele jamais é explicado de modo definitivo e deve sempre ser decifrado de novo (Chevalier e Gheerbrant, 1988 :XVI). 
O símbolo traz para a consciência que o contempla o sentido oculto de uma situação concreta, possibilitando inúmeras percepções até então desconhecidas, alcançando dimensões que o racional não pode atingir. Por isso mesmo, apresenta diferentes facetas, com inúmeros significados, que vão muito além da sua representação imediata. 
O símbolo nasce da própria alma e surge do conflito psíquico inerente a esta. Conjuga, de um lado, o arquétipo, fonte de sua numinosidade e em si mesmo irrepresentável; de outro, apresenta uma imagem concreta, retirada de seu contexto e que, ao revestir e dar forma ao arquétipo, de certo modo também lhe dá existência, diferenciando-o do caos do inconsciente de onde se origina, como que realizando o próprio ato cosmológico da criação. Por fundar-se na gênese da alma humana, o símbolo adquire a capacidade de tocar interiormente o homem e mostra-se carregado de afeto. 
É o símbolo que media a relação entre consciência e inconsciente. Estes, para a psicologia analítica, raramente estão de acordo no que se refere a seus conteúdos e tendências. O homem tende a polarizar seu funcionamento psíquico em um dos extremos, acarretando uma unilateralidade que pode ser desvantajosa para o processo psíquico, na medida em que a não integração do oposto exclui justamente o aspecto criativo e as perspectivas de transformação e maior amplitude psicológica. Juntas, porém, as tendências do inconsciente e da consciência constituem a função transcendente – assim chamada porque torna possível a passagem de uma atitude para outra, sem perda do inconsciente. 
“A função transcendente aparece como uma das propriedades características dos opostos aproximados. Enquanto estes são mantidos afastados um do outro – evidentemente para evitar conflitos – eles não funcionam e continuam inertes” (Jung, OC V. VIII/2, §189).
Com sua capacidade de síntese, o símbolo permite, portanto, que consciência e Inconsciente realizem a união dos opostos e formem uma totalidade. A construção de pontes entre os opostos dinamiza e mantém a vida psíquica em constante movimento, redistribuindo a libido e canalizando-a para a atividade útil (Jacobi, 1995 92). 
Vimos que a linguagem prenhe de sentido do símbolo grita para nós que significa mais do que diz; vimos também que podemos indicar o símbolo de imediato, muito embora não sejamos capazes de desvendar plenamente seu significado, de modo que ele permanece um desafio perpétuo para nossos pensamentos e sentimentos. Provavelmente por isso um trabalho simbólico é tão estimulante, nos domina com tanta intensidade e raramente nos propicia um prazer apenas estético (Jung, OC V. XV).
Segundo Jung, (OC V. VIII/2, §171) há pessoas “…que nada vêem ou escutam dentro de si, mas suas mãos são capazes de dar expressão concreta aos conteúdos inconscientes”. O trabalho com canais como as expressões plástica e corporal, a música, a literatura e as artes cênicas, transformam a arte num meio facilitador, que confere uma manifestação visível ao afeto. Não cabe aí um olhar técnico ou estético; apenas se concede livre espaço à fantasia, para que tudo se faça da melhor maneira possível.
No trabalho com técnicas expressivas, a linguagem simbólica pela qual o Inconsciente se expressa emerge através das diferentes técnicas, dando acesso à mente inconsciente do cliente. O processo arteterapêutico, assim como o processo simbólico, acontece na “… vivência na imagem e da imagem” (Jung, OC V. IX/I, §82).
As artes, mitos, religiões e literatura sempre expressaram as mais profundas emoções humanas. São meios de comunicação comuns a toda espécie humana, que permitem que nos expressemos “…através da palavra, da mímica e das reações psicomotoras, da realização de atos, das várias modalidades de expressão plástica” (Silveira, 1981 : 114). A função simbólica da arte reside na possibilidade dessa expressão e nos múltiplos significados das obras de arte, ambos inerentes ao fazer artístico. 
A arteterapia, embora originada dessa atividade milenar, é de aparecimento recente como instrumento de terapia. Na década de 20, Jung começou a utilizar a arte como parte do tratamento psicoterápico, considerando-a “… a expressão mais pura que há para a demonstração do inconsciente de cada um. É a liberdade de expressão, é sensibilidade, criatividade, é vida” (in Chiesa, 2004 34). Para ele, as imagens eram uma simbolização do inconsciente e a criatividade, uma atividade humana natural que, na medida em que pode estruturar o pensamento, possui uma função em si mesma.
A arte é instrumento essencial para o desenvolvimento humano; daí ter efeito terapêutico (podendo até mesmo ser autocurativa), pois possibilita ao indivíduo expressar seus conteúdos conflitivos e/ou traumáticos através de suas produções artísticas, ajudando na revelação do inconsciente (Diniz, 1998). Quando utilizada com fins terapêuticos, os aspectos estéticos deixam de ser privilegiados. 
A prática da arteterapia facilita a decifração do mundo interno, o confronto com as imagens e a energia psíquica que aí se configuram. A compreensão destas formas simbólicas possibilita o confronto com o inconsciente e a tomada de consciência de seus conteúdos, pois o mundo das emoções e o mundo das coisas concretas não estão separados por fronteiras intransponíveis. Ambos permeiam-se no dia a dia, o que é particularmente manifesto nas obras de artes plásticas e literárias, e a arteterapia pode aperfeiçoar estes intercâmbios.
            É, portanto, um processo terapêutico baseado na criação e análise de séries de produções artísticas (que, isoladas, poderiam ser de difícil decodificação) que permitirão acompanhar com bastante clareza o desdobramento de processos intrapsíquicos e identificar temas que possuam relação significativa com os casos clínicos em estudo. Tais produções, tal quais os sonhos, indicam motivos míticos e a existência de uma continuidade no fluxo de imagens do inconsciente.
Disse Jung (OC Vol. VIII/II §168): 
 “Pode-se expressar um distúrbio emocional, não intelectualmente, mas conferindo-lhe uma forma visível. Os pacientes que tenham talento para a pintura ou o desenho podem expressar seus afetos por meio de imagens. Importa menos uma descrição tecnicamente ou esteticamente satisfatória, do que deixar o campo livre à fantasia, e que tudo se faça do melhor modo possível”
Jung percebeu a relevância do uso de técnicas expressivas como meio de acesso ao inconsciente, integrando a expressão artística à linguagem verbal. As duas ocorriam juntas no setting terapêutico, “…uma auxiliando, esclarecendo e enriquecendo a outra” (Carvalho, 1995 31), permitindo que os analisandos se expressassem “…de conformidade com o gosto ou os dotes pessoais” (Jung, OC Vol. VIII/II  parágrafo 400): de forma dramática, dialética, visual, acústica, ou na forma de dança, pintura, desenho ou modelagem. O resultado era uma série de produções artísticas complicadas, cuja multiplicidade me deixou confuso durante anos, até que eu estivesse em condições de reconhecer que este método era a manifestação espontânea de um processo em si desconhecido, sustentado unicamente pela habilidade técnica do paciente, e ao qual, mais tarde, dei o nome de “processo de individuação”.
Ao perceber o efeito terapêutico de tais técnicas sobre o indivíduo, Jung abriu uma nova perspectiva para o processo psicoterapêutico. 
“… com a mão que guia o creiom ou o pincel, com o pé que executa os passos de dança, com a vista e o ouvido, com a palavra e com o pensamento: é um impulso obscuro que decide, em última análise, quanto à configuração que deve surgir; é um a priori inconsciente que nos leva a criar formas (…) A imagem e a significação são idênticas, e à medida que a primeira assume contornos definidos, a segunda se torna mais clara” (ibid : 141).
Sobre este aspecto, diz Silveira (1981 102): “… através deste método, onde se conjugam imagem e ação, Jung descobriu o desdobramento de um processo inconsciente — o processo de individuação, que é o próprio eixo de sua psicologia”. Seu trabalho com pacientes psicóticos nos mostra o êxito do uso terapêutico das técnicas expressivas tendo a Psicologia Analítica como base. 
O processo psíquico desenvolve seu dinamismo por meio de imagens simbólicas. O símbolo (fruto da energia psíquica, objetivada em imagens) traz a possibilidade de “… conhecer, compreender, refazer, recuperar, rememorar, reparar estruturas e transcender” (Philippini, 2000 : 19).  
Nas produções artísticas pode-se promover a transferência de energia de um nível para outro. Através do processo criativo, estabelece-se uma ponte entre extrapsíquico e o intrapsíquico, que pode vir a curar a dissociação entre as revelações internas e externas. Ao criar uma obra, estabeleço uma relação extrapsíquica com esse objeto e simultaneamente uma relação intrapsíquica com o conteúdo que a originou; a imagem passa a ser viva, atuante e poderá ter eficácia criativa. A Arteterapia, sob a ótica junguiana, parte do princípio que a vida psíquica tem uma tendência inata à organização e que o processo terapêutico através da arte poderá dinamizar esta tendência. As técnicas e materiais escolhidos fundem-se à “… energia psíquica da pessoa e o material (…) que ela escolher, criando, expressa as marcas e as dores, tornando possível a transformação que se deseja” (Fussi, in Valladares, 2004 : 149). No referencial junguiano, os símbolos são parte do processo de autoconhecimento e transformação, “… atuam na vida. (…). Alcançam dimensões que o conhecimento racional não pode atingir. Transmitem intuições altamente estimulantes, prenunciadoras de fenômenos ainda desconhecidos” (Silveira, 1994 : 85). Conectam a essência de cada ser, atuando diretamente no eixo Ego-Self e apontando o rumo que a energia psíquica segue. São, assim, os norteadores do caminho que o arteterapeuta deve seguir.
Por facilitar a expressão das emoções através de produções artísticas, a Arteterapia é uma excelente forma de confrontar imagens sombrias. Proporciona oportunidades de a imaginação desenvolver-se livremente e permite ao indivíduo participar concretamente do produto imaginado. O exorcismo das imagens aterradoras reduz seu impacto, tornando-as mais familiares. A arte despotencializa a carga emocional dessas imagens e facilita tanto sua decodificação quanto a reorganização interna e a reconstrução da realidade. Expressando através da arte os fragmentos de um ego cindido, ou de um conflito vivenciado desordenada e dolorosamente, o indivíduo conseguirá libertar-se dessas imagens aprisionadas e aprisionantes.
O arteterapeuta lida diretamente com a capacidade simbólica da comunicação não-verbal. Uma vez que a arteterapia leva “…à materialização de símbolos” (Philippini, 1998 : 5), torna-se um instrumento “intermediário”, que possibilita agrupar processos inconscientes e os situar, aos poucos, discriminadamente no nível consciente. As técnicas utilizadas possibilitam que os símbolos sejam expressos livremente.
Tais criações simbólicas
“… expressam e representam níveis profundos e inconscientes da psique, configurando um documentário que permite o confronto, no nível da consciência, destas informações, propiciando insights e posterior transformação e expansão da estrutura psíquica” (ibid : 6).

A análise simbólica (a interpretação do símbolo) se dá tanto no nível objetivo quanto no subjetivo. No primeiro, busca-se relacionar os conteúdos emergentes com a realidade da pessoa, vinculando-os a fatos, pessoas, situações reais e ao que possa ter provocado tal emersão. No segundo, os conteúdos emergentes são vistos como aspectos e possibilidades do indivíduo, visando a tornar manifesto um conteúdo latente. 
Para tanto, o arteterapeuta pode utilizar a interação entre técnicas artísticas e o verbal, lançando mão de desenhos, pinturas, colagem de papéis ou outros materiais, modelagem, esculturas, expressões corporais, psicodrama, ritmos, canto; ou ainda armar um brinquedo, explorar conteúdos emergentes na vivência de fantasias dirigidas, na montagem de uma caixa de areia, na criação e interpretação de personagens, no movimento, na postura ou na expressão corpórea, entre tantas outras variações de técnicas criativas, que podem ser plásticas, artesanais, corporais, dramáticas, literárias, musicais. 
Tais recursos são utilizados de forma integrada ou isolada, conforme a necessidade de cada paciente e o objetivo do terapeuta. Podem favorecer tanto a amplificação do símbolo (buscando compreendê-lo melhor, utilizando técnicas e materiais para gerar novas realidades e uma ampliação dos significados) quanto sua circumambulação (os materiais e técnicas trazem novos recursos para a exploração de outras representações, trazendo um novo sentido ao conteúdo expresso). 
Por facilitar a visualização dos símbolos, o processo arteterapêutico acarreta um grande volume de imagens, através das quais o terapeuta tem acesso ao universo imaginário de seu cliente e observa os mais diversos registros, carregados de imagens arquetípicas. Ao arteterapeuta cabe 
“… a sensibilidade para acolher as imagens simbólicas que representam a transformação dessa energia (psíquica), criando condições para que as imagens do inconsciente encontrem formas de expressão. Essas imagens próprias da percepção do mundo (interno) trazem recursos importantes para ampliarmos o aprendizado do outro e aprendermos a partir dessa relação” (Philippini 2000, in Fussi, 2000 : 144).”
Trata-se, portanto, de “…um trajeto, marcado por símbolos, que assinalam e informam sobre estágios da jornada da individuação de cada um” (Philippini, 1998 : 7) e se manifestam através de analogias, das associações e das várias descobertas que ocorrem no enfrentamento do sujeito durante a criação de sua obra ou com ela. Sendo assim, o percurso arteterapêutico numa abordagem junguiana busca fornecer “…suportes materiais adequados para que a energia psíquica plasme símbolos em criações diversas. Estas produções simbólicas retratam múltiplos estágios da psique, ativando e realizando a comunicação entre inconsciente e consciente” (Philippini, 2000 : 17). Podem, então, 
“… tornar os conteúdos inconscientes acessíveis, assim aproximá-los da compreensão. Com esta terapêutica consegue-se impedir a perigosa cisão entre consciência e processos inconscientes. Todos os processos e efeitos de profundidade psíquica, representados pictoricamente são, em oposição à representação objetiva ou consciente, simbólicos, quer dizer, indicam da melhor maneira possível, e de forma aproximada, um sentido que, por enquanto ainda é desconhecido” (Jung OC Vol. XV : 207).

Nessa experiência, o indivíduo pode viver o símbolo – isto é, se permitir ser tocado emocionalmente por ele – e conectar-se com as lembranças de sua história de vida na perspectiva do símbolo vivificado, com as memórias dos antepassados através dos conteúdos míticos vinculados àquele símbolo e com as possibilidades presentes no significado arquetípico da imagem simbólica.
No pensamento de Jung, a criatividade reveste-se de uma extrema importância. De fato, ele afirma que, “… do ponto de vista psicológico, é possível distinguir cinco grupos principais de fatores instintivos, a saber: a fome, a sexualidade, a atividade, a reflexão e a criatividade” (Jung, OC Vol. VIII/II § 55). Nem tudo que é criativo é artístico, mas tudo que é artístico é criativo. Ao usar a arte no processo de individuação, ajudamos a abrir o canal da criatividade, o canal de fazer cultura como forma de sobrevivência, não só física como psíquica. Para o ser humano, não basta só a nutrição orgânica, viver para procriar e se alimentar; ele precisa de um sentido na vida, busca a conexão com sua alma. A criatividade é um potencial inerente ao homem, e a sua realização é uma necessidade.

            A ARTE E O NUMINOSO
Um aspecto importante do uso da arte é como facilitadora do encontro com o numinoso. O numinoso, segundo Jung é (OC Vol. XI/I, § 6) 
“… uma instância ou efeito dinâmico não causado por um ato arbitrário da vontade. Pelo contrário, ele arrebata e controla o sujeito humano, que é sempre antes sua vítima que seu criador. O numinoso é tanto uma qualidade pertinente a um objeto visível, como a influência de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência”. (OC Vol. VIII/II, § 216)
Esse contato com o numinoso foge inteiramente à nossa vontade, embora algumas pessoas o busquem através de drogas, práticas religiosas e outros caminhos. O numinoso não pode ser conquistado, o indivíduo pode somente abrir-se para ele. Quando nos deparamos com o numinoso, essa emoção é impossível de ser descrita. Não há explicação, mas traz sempre uma mensagem misteriosa, enigmática e profundamente impressionante. 
Desde épocas arcaicas, a arte funciona como um meio de apreensão e reconhecimento das coisas significativas do homem, tanto nas suas experiências externas quanto internas. Escrevendo uma poesia, tocando uma música, pintando ou dançando, somos capazes de trabalhar com forças interiores que, se permanecessem inconscientes, poderiam nos esmagar. Assim, não fugimos nem evitamos o que está nos perturbando, ao contrário, ”nós o confrontamos munidos de um novo referencial”. (Nachmanovitch, 1993:166). 
Por trás do impulso criativo existe um nível mais profundo de compromisso, um estado de comunhão com um todo que está além de nós. Quando esse elemento de união é injetado em nossas formas de expressão, atingimos algo que ultrapassa a mera criatividade, o simples propósito ou a mera dedicação; “atingimos um estado em que agimos por força do amor. O Amor está relacionado à perpetuação da vida, e, portanto, irrevogavelmente ligado a nossos valores mais profundos.” (Nachmanovitch, 1993:166) 
Ao nos conectarmos com esse Amor, nosso estado de consciência se transforma. Diante da suprema Alteridade e do eterno Amor, o ser humano entra num estado místico. Tudo fica numinoso e carregado de energia divina. (Boff, 2002).
No sul do México, o povo Nautle chama os artistas de Tehuani, que significa “aquele que se conecta com Deus”. Pois através da arte nos conectamos com a Totalidade. Como diz Jung, através da arte “se toca as regiões profundas da alma, salutares e libertadoras, onde o indivíduo não se segregou ainda na solidão da consciência, seguindo um caminho falso e doloroso. Tocou as regiões profundas, onde todos os seres vibram em uníssono…” (OC Vol. XV § 161)
            Nesse momento, experimentamos um poder superior dentro de nós, um fator desconhecido em si, o Numinoso. Não podemos defini-lo, ou entende-lo, mas através da arte, podemos praticá-lo. 
           
            CONCLUSÃO
            A arteterapia, como vista ao longo deste trabalho, é uma prática terapêutica que se utiliza de diferentes recursos expressivos, como as artes plásticas e cênicas, música, a expressão corporal e a literatura, como aliadas numa leitura simbólica do fazer artístico.
            Afinal, pintar, desenhar, cantar e representar constitui formas contundentes e instigantes de manifestação do “eu”. As expressões artísticas, portanto, vêm se tornando uma importante ferramenta terapêutica. Proporciona-se um espaço para revelação de sentimentos, uma abertura para a vida e todas as possibilidades desta. Através do processo criativo, estabelece-se uma ponte entre o extrapsíquico e o intrapsíquico, que pode vir a curar a dissociação entre as revelações internas e externas. Pois, ao criar uma obra, estabeleço uma relação extrapsíquica com esse objeto e simultaneamente uma relação intrapsíquica com o conteúdo que a originou.
            A arte traz em si uma possibilidade de tradução de imagens e representações mentais em expressão, trazendo o mundo interno para o concreto e possibilitando ao sujeito visualizar concretamente sua transformação.
            Percebemos que a linguagem do inconsciente é uma linguagem simbólica e que a arte, assim como os sonhos, seria uma forma de comunicação desse inconsciente.  
            A arteterapia favorece esse processo, estruturando a personalidade, que se expressa na criação. O trabalho com a expressão e criação artística é construtor de um canal direto para receber a informação do sistema límbico tanto de memórias pré-verbais, como imagens simbólicas, precursoras de novos acontecimentos que irão se realizar no futuro.
            Jung mostra ao longo de sua obra, que o inconsciente não só reage; ele age, ele prediz, ele alerta, ela abre horizontes, ele elucida. Sendo a escrita do inconsciente essencialmente imagética, a Arteterapia é meio eficaz para captar e expressar essas imagens, trazendo-as para sua expressão material, abrindo-se para a integração à consciência. 
            Trabalhando com processos pré-verbais, a arteterapia, além de interiorizar esse mergulho no inconsciente, ajuda na expressão desses conteúdos, trazendo imagens de uma memória ancestral. E nesse processo de inteireza de ser, a gente realiza no indivíduo a história do homem, a coletividade, a totalidade.

 

 

Ligia Diniz possui graduação em Psicologia pela Universidade Santa Úrsula (1992) e graduação em Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (1981), atuando principalmente como Psicóloga Junguiana, Arteterapeuta e Facilitadora de Biodança, Professora de Arteterapia e Psicologia Analítica. É Analista Junguiana formada pelo Instituto Junguiano do Rio de Janeiro, membro da Associação Junguiana Brasileira e do Instituto Internacional de Psicologia Analítica. Membro fundador da Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro e membro do Conselho Diretor da União Brasileira de Arteterapia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Diniz,Lígia-Organizadora, Cadernos da AARJ, vol. I,II, e III.
Diniz,Lígia-Arteterapeuta um Cuidador da Psique,capítulo: Cuidar com Arte – A arte de cuidar. Editora Vetor, 2011.

SEPARATIO

Resumo

O presente artigo aborda a operação alquímica Separatio e sua correspondência com a individuação, na qual também ocorre separação, diferenciação na busca da personalidade individual. Mostraremos, por meio de um caso clínico, a utilização da Arteterapia neste processo.

 

Abstract

The current article speaks of separatio’s alchemical operation and its correspondence to individation, wherein separation and differentiation also occur in search os individual personality, singular and indivisible. We will presente a clinical case in order to demonstrate the use of Arttherapy in that process.

 

Resumen

El presente artigo habla de la operación alquímica separatio y de su correspondência com la individuación, em esta ocorre también separación y diferenciación em la búsqueda de la personalidade individual, singular e indivisible. Mostraremos, a través de um caso clínico, la utilización del arte terapia em este processo.

 

 

 

“O que torna a alquimia tão valiosa para a Psicologia é o fato de suas imagens concretizarem as experiências de transformação por que passamos na Psicoterapia…” (C.C.Jung)

 

A alquimia, também chamada de Química da Natureza, teve seus primeiros registros no século I a.C.. Desenvolveu-se por um período de 15 séculos. Seu saber acabou por dar origem à Química e influenciando a Física, as correntes religiosas, filosóficas e literárias. A alquimia é a arte da transmutação dos metais com vistas à obtenção do ouro. Em termos simbólicos, o ouro que se obtém por meio desta operação de transformação profunda é a imortalidade.

O ouro alquímico é, na verdade, o substrato advindo da única transmutação real: a individualidade humana. A “prima matéria” adquirida do processo alquímico está, segundo Jung, no próprio Ser. O processo alquímico pode ser comparado ao processo de individuação, sendo este o processo de diferenciação, cuja meta é o desenvolvimento da personalidade individual, ambos longos e graduais. A personalidade individual é única e incomparável, e o percurso para encontrarmos o Si mesmo, o mais íntimo de nós, é intrínseca ao gênero humano – “a coordenação do eixo Ego-Self, realiza a totalidade, seja quais forem as feridas e faltas… se trata de existir de acordo com uma estrutura em que funcionam princípios opostos”. (Humbert, 1985, p.177)

A Opus Alquímica – a obra – e o Processo de Individuação são vistos aqui como fenômenos idênticos. E, como postulava Jung, só a partir de um diálogo constante entre consciente e inconsciente é que uma pessoa pode descobrir este tesouro oculto. O ouro filosófico, a pedra maravilhosa, é o que os alquimistas visavam “desenvolver”. Jung aponta que a verdadeira raiz da alquimia estava nas projeções vivenciadas por cada pes1quisador, que, na realidade, experienciava seu inconsciente e assim repetia toda a história do conhecimento da natureza, em seu eterno movimento. A alquimia, portanto, tinha um aspecto duplo: a obra química do laboratório e o processo psicológico, em parte consciente e psíquico e em parte inconsciente e projetado nos processos de transformação da matéria. Os estados de nascimento, morte e ressurreição são indicações por meio das quais a matéria precisa passar, mas cada artífice o viverá de forma diversa. Energias dinâmicas estão em constante movimento, em uma jornada de lapidação e recriação, sendo, portanto, um processo vívido, pelo qual o sábio deve enveredar-se para obter o máximo de si e da natureza a qual pertence. “Para o alquimista, não é o homem é o primeiro a necessitar da redenção, e sim a divindade, perdida e adormecida na matéria.” (Jung, OC XII, §420)

A base da “opus” é a matéria-prima, e Jung considerava esse um dos segredos mais importantes da alquimia. A pedra existe desde toda a eternidade e, também, não tem fim, existirá por toda a eternidade. Justamente por sua característica numinosa, a pedra só pode ser apreendida se o buscador ousa abrir os olhos da alma e do espírito, “contemplando, e distinguindo com nitidez, à luz interior… a pedra justamente com sua matéria tem mil nomes, sendo por isto chamada de miraculosa (…) Res ex qua sunt res, est Deus invisibillis et immobilis (A coisa que dá origem às coisas é o Deus invisível e imóvel)”. (Jung, OC XII, §431)

Segundo Jung, em “Psicologia e Alquimia”, a alquimia descreve um caminho de transformação realizado em quatro estágios: Nigredo, Albedo, Citredo ou Citrinitas e Rubedo. Esses estágios são caracterizados pelas cores: o preto, o branco, o amarelo (amarelecimento) e o vermelho; mais tarde aparece também a viriditas, o verde, o verdejar. Mas, diz Jung que a citrinitas e a viriditas não são muito mencionadas. Assim, a opus alquímica é focada nesses três estágios: nigredo, albedo e rubedo: o escurecimento, o embranquecimento e o avermelhamento. A mudança da cor indica que um processo de transformação está ocorrendo.

A partir do estado oculto, chega-se ao manifesto. Segundo Jung, a “prima matéria” coincide às vezes com a noção de estado inicial do processo – nigredo. É a terra negra, mágica e fértil que o ouro é semeado (Jung, OC XII §433). Entretanto, vista como estágio inicial, a nigredo denuncia um estado de confusão, do Caos, mas também de um potencial criativo. Da nigredo até o embranquecimento da Albedo, encontramos o azul escuro e o azul claro. Então, a união das múltiplas cores (omnes colores) – “cauda pavonis” – conduz à cor branca, uma e agregadora. A meta alcançada por meio do procedimento de oblação é a Albedo – estado lunar ou prata, que ainda pode crescer mais e alcançar o estado solar.

A partir das trevas – Nigredo – surge a Luz – Aurora – Albedo, mas  ainda se faz necessária a integração, realizada na Rubedo.

Pois, nesse estado de “brancura” da Albedo não se vive, é uma espécie de estado ideal, abstrato.

Para insuflar-lhe a vida, deve ter “sangue”, deve possuir aquilo a que os alquimistas denominam a rubedo, a “vermelhidão” da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal de albedo em um modo de existência plenamente humano. Só sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de negrume é dissolvido, em que o diabo deixa de ter existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, a opus magnum está concluída: a alma humana está completamente integrada.1

 

O processo de transformação se passa no interior de um vaso hermético – temenos (templo, recinto sagrado) – continente dentro do qual os opostos se transformam. Esse vaso hermético pode ser lido como um grande útero, lugar de renascimento espiritual, dando luz ao ser inteiro.

As inúmeras operações alquímicas ali ocorrem, da mesma maneira que a transformação dos conteúdos psíquicos. Possuir um vaso correspondente a olhar-se, buscar o que há de mais interno em si.

O propósito seria cria ruma substância transcendente simbolizada de várias maneiras, como pedra filosofal, elixir da vida, Opus e Individuação. Há um forte intuito de fazer o sagrado por meio dessa química da natureza, em um processo “mágico” no qual o verdadeiro cerne é a transformação daquele que o perfaz.

Nesse processo alquímico, transformador, na busca de Si mesmo (Opus), muitas são as operações, e citaremos as mais conhecidas – calcinatio (calcinação); solutio (solução); elementorum separatio (separação dos elementos); conunctio (conjunção); putrefactio (putrefação); mortification (mortificação); coagulatio (coagulação); cibatio (nutrição); sublimatio (sublimação); fermentatio (fermentação); exaltatio (ampliação); proiectio (projeção). Portanto, a prima matéria é submetida a tais procedimentos químicos a fim de se obter a Pedra Filosofal.

Essas operações oferecem para a Psicologia Analítica a oportunidade de apreensão de características básicas para o entendimento da vida da psique, ilustrando toda a gama de experiências que constituem a individuação. Compreendamos, entretanto, que o indivíduo sempre está exposto a desafios na trajetória de uma vida. Portanto, pode-se voltar a Nigredo e tornar a perfazer as operações alquímicas. É um movimento espiralado, bastante elucidativo dos níveis crescentes de tomada de consciência pelos quais podemos optar no percurso de uma vida. Neste artigo, abordaremos a operação Separatio.

 

Separario

                               “Há um tempo de juntar

E um tempo de separar

Aquele que entender

Este curso dos acontecimentos

Toma cada novo estado em sua devida hora”.

(Chuang Tzu)

 

Em termos alquímicos, a Separaio refere-se à decomposição da matéria originária em elementos. A prima matéria é uma confusa mistura de componentes indiferenciados e opostos entre si que requer um processo de separação, e essa mistura composta passa por uma discriminação de elementos. Psicologicamente, a Separatio significa separação, diferenciação, discriminação, discernimento e reconhecimentos do que é nosso e do que não é nosso e, também, saber distinguir o que é do que não é.

Muitos Mitos Cosmogônicos descrevem a criação a partir da Separatio, a partir do caos primordial, a ordem tem seu germe. Diz o mito Órfico:

No início havia Nyx, a noite, um enorme pássaro de negras asas que foi fecundado pelo vento e, no imenso regaço da escuridão, pôs um ovo prateado. Quando esse ovo se partiu, da metade superior, surgiu Urano, o Céu Estrelado, da inferior, Gaia, a Terra e, do meio da gema, nasceu o filho do vento; um deus de asas douradas: Eros, o deus do Amor – a energia que tudo liga e tudo dá sentido.(2)

Na Gênesis, primeiro texto da Bíblia Judaico-Cristã, que versa sobre as origens do mundo e da humanidade, podemos fazer uma analogia com a operação Separatio:

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas.

Deus disse: haja Luz, e houve a luz. Deus viu que a luz era boa, e Deu separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz “dia” e às trevas “noite” (…)

Deus disse: haja um firmamento no meio das águas e que ela separe as águas das águas, e assim se fez. Deus fez o firmamento. Que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus chamou o firmamento “céu” (…)

Deus disse: que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e anos, que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra, pra comandar o dia e a noite, para separar a luz das trevas, e Deus viu que isso era bom (…)

Deus disse “que a terra produza seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas segundo sua espécie”, e Deus viu que isso era bom. (Bíblia de Jerusalém)

 

Ao nomear as realizações da Criação, o Divino enuncia um ato de reconhecimento. Ao proferir o nome de um ser ou de uma coisa, entra-se em relação com ele, com ela e, por conseguinte, ele e ela entram em relação conosco.

Como podemos verificar, na Gênesis também encontramos a Separatio, a criação como distinção, colocando ordem no que ainda não está distinto, colocando cada coisa no seu lugar. Portanto, gera a partir do caos, o Cosmo, aludindo que uma criação harmônica pulsa nesse caos.

A Separatio pode ser compreendida como um importante aspecto da psicoterapia, cujo componente mais relevante é a separação entre sujeito e o objeto. O ego imaturo é notório pelo seu estado de participation mystique tanto com o mundo interior como com o mundo exterior. Um ego nessa condição deve passar por um prolongado processo de diferenciação entre sujeito e objeto. À medida que isso ocorre, a desidentificação com outros pares de opostos também ocorre. Pela separação, distinguimo-nos dos outros e criamos nosso ser único e singular, descobrimos como somos diferentes dos outros e afirmamos estas diferenças. Separar-se do coletivo e dos entes íntimos é necessário para encontrar o ser individual. A identificação psíquica com os pais e os familiares é muito forte.

Jesus no Evangelho diz (Mateus 10:34-36):

… Não penseis que vim trazer paz à Terra. Não vim trazer paz, mas espada. Com eleito, vim contrapor o homem a seu pai, a filha à sua mãe e a nora `sua sogra. Em suma: os inimigos do homem serão seus próprios familiares.

Jesus reconhece esse perigo de identificação. Os inimigos do homem são seus próprios familiares, pois, por serem mais próximos, é com eles que se dá com maior intensidade a identificação. E essas identificações precisam ser desfeitas, é necessário haver separação, o discernimento de quem são nossos pais e de quem somos nós.

O Logos é o grande agente da Separatio, que traz consciência e poder sobre a natureza – interior e exteriormente – graças à sua capacidade de dividir, nomear e categorizar. Ao separar os opostos, o Logos traz clareza; mas, ao torná-los visíveis, traz também o conflito.

Um exemplo deste conflito paradoxal é encontrado no “Evangelho Gnóstico” de Thomas, Jesus disse:

Os homens pensam talvez, que é a paz que eu vim espalhar pelo mundo. Eles não sabem que a discórdia que eu vim espalhar pela terra: fogo, espada e guerra. Pois havendo cinco em uma casa: três serão contra dois e dois serão três, o pai contra o filho e o filho contra o pai. E eles estarão sozinhos. (3)

Neste exemplo, percebe-se que Cristo, como logos, discriminante, vem para dissecar ou desmembrar a “participação mística” da família psíquica, pois a meta é se fazer individual: “Eles estarão sozinhos”. Terminada a Separatio, os opostos purificados podem ser reconciliados na conunctio, que é o alvo da opus. Precisamos nos separar para sair da fusão e nos diferenciarmos dos outros, para depois poder estar em comunhão com os outros.

Ainda, na tradição judaico-cristão, temos este trecho de Matheus (25: 31-460) sobre o último julgamento, que também enfatiza a questão do separar para discernir:

Quando o Filho do Homem vier em sua glória e todos os anjos com ele, então se assentará no trono de sua glória. E serão reunidas em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, e porá as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. (…)

O julgamento pode ser entendido no sentido de ser uma possibilidade de renascimento a partir da reconciliação com sua porção divina que pulsa internamente. O julgamento é o substrato das experiências obtidas durante a jornada. Precisa-se, portanto, da separação e do juízo (outra palavra possível para discernimento) a cerca do apreendido durante o caminho. Há também o discernimento do que é cabrito e do que é ovelha, e colocar cada um no seu devido lugar.

Como exemplo da operação “Separatio” em Arteterapia, foi escolhida a vivência de separar sementes; ela consiste em dar uma porção de sementes misturadas para o cliente separar e, depois, criar uma imagem com cada parte separada, ou seja, dar uma forma e nomeá-las. Depois, usando a “escrita criativa”, o cliente conversa ou escreve para cada imagem. E, assim, separando, agrupando, dando forma, um novo sentido é descoberto.

 

Caso Clínico

Maria tem 17 anos, é do sexo feminino, estudante, filha de pais divorciados, vive com a mãe e a irmã, é bastante introvertida, se expressa bem por meio das imagens, escreve bem e gosta de escrever poesias. Em determinado momento do processo terapêutico, eu lhe propus a vivência de separar sementes, pois mostrava-se com o Ego pouco diferenciado.

Derramei no chão seis tipos de sementes bem misturadas: feijão vermelho, ervilha, semente de girassol, feijão preto, feijão branco e canjica. Pedi a Maria que as separasse e, depois, criasse uma forma com cada espécie usando cola branca e cola colorida para colar as sementes em um papel branco e, depois, escrever sobre cada imagem e nomeá-las.

Seguem aqui as imagens que ela criou e nomeou e as poesias que escreveu para cada imagem.

 

Feijão vermelho

Coração – Útero

Feião – Sangue

 

 

É bom

É natural

É familiar

É gostoso

O feijão

Como não

De mãe

Cheiro de cozinha

Comida

Carinho

Sangue é vida

Calor

Conforto

Amor

Feijão – Sangue – Amor

É mão – é humano – é próximo

Enjoa às vezes…

Às vezes é bom…

Tudo bem,

Assim a vida é.

 

Ervilha

Minhoca do Deserto (Maria associou essa imagem a pai)

 

 Princípio dá nojo

Mas mais de perto

É uma construção engenhosa

Incrível

Um verme que habita as areias do deserto

Ninguém tem pena

Inspira ódio e asco

Mas de perto tem a beleza

De uma máquina de guerra

Um tanque blindado

Anéis blindados que recobrem o corpo

E a força e a perseverança

De um sobrevivente

Alguém que compreende

O lado ruim de Deus

A dureza de sobreviver no deserto

Mas conhece o valor da lição

Ajuda a fortalecer,

É ensiná-lo a viver

É uma forma estranha de amar.

 

Semente de Girassol

Coisas da Natureza

 

Não é nem possível guerrear contra a natureza

Eu não tenho como de aproximar dela

Então fico afastada e ela me invade.

E eu experimento o pior de tudo

A natureza brincando com a gente

Ela controla os nossos corpos

Mudando nossas vidas para sempre

Sem o menor esforço.

Ela nos ataca com suas mil armas

São tantas doenças, dores

Bichos asquerosos, feras

São loucuras, medos irracionais

Nós somos natureza

E esse grupo que somos nós

Sofre por causa dela

Então… Será que depois de refletir nesse breve instante, percebi?

A natureza faz com que a própria natureza sofra

Ela mantém-se afastada dela mesma

E sofre de saudades

Saudades de si mesma.

A natureza e alguém

A natureza somos nós que nos destruímos,

Nós que nos matamos, que odiamos

Nós que nos mantemos afastados de nós mesmos

Outras coisas nos levam e sem querer vamos embora

Nos deixando sozinhos.

Coisas nos levam, coisas ficam (nossas almas) e nos fazem sofrer

COISAS DA NATUREZA.

 

Feijão Preto

Pássaro – Especial

(Maria associou esta imagem ao namorado)

 

Eu sou capaz de voar

Você é capaz de voar?

Mas só podemos voar juntos

À noite, juntos

Juntos somos

Um ser alado, gigantescos

Que pode nos levar

Aos sonhos que buscamos

E cada estrela que alcançamos

É somente uma parada

Para vivermos a plenitude

E permanecermos juntos até idade avançada

Porque mesmo que nos separemos no futuro

A cada suspiro para o céu, nosso

A cada sonho em noites que cismam brilhar

Um gigantesco pássaro feito de noite e luar

Nos levará para fazermos do viver, sonhar.

 

Feijão branco

Riqueza D’Alma

 

Amigos

Eu nunca lhes dou atenção

E quando demonstro afeto

Ele vem carregado de culpa

Eu não lhes dou o devido valor!

Vocês se mostram boas surpresas

Quando eu abro uma brecha

Mas eu tenho medo!

Eu preciso cuidá-los

Organizá-los

Guardá-los com cuidado

Sinto que um dia

Vou precisar de vocês, riqueza d’alma!

Vocês serão a chave!

Eu preciso de vocês

E precisarei ainda mais

Me ajudem a ser livre!

Só há culpa e medo…

Não… Há também meu afeto, meu carinho

Minha riqueza d’alma

Para eu dar a vocês, Amigos!

 

Canjica

Labirinto de Dentes

 

Um labirinto de dentes

Todos os dentes que caíram da minha boca

Todos os dentes que foram arrancados de minha boca

Não tem saída

Não tem lugar

Pra sentar

Pra dormir

Pra comer

Cada dente é um parente perdido

Cada molar uma lembrança

Os meus defeitos

As minhas dores

Meus problemas sem soluções

Mais ou menos organizados

Num quadrado de altas paredes

De várias paredes

De várias passagens

E nem saída ou entrada

Labirinto de dentes

É a minha pena, meu juiz, minha prisão.

 

 

 

Sementes estradas diferentes das outras

Minhas fraquezas

 

Mais superficialmente, à esquerda, estão os mais aceitáveis.

São almofadinhas consumistas.

Dois homens engravatados, jovens, sérios. Ambiciosos, ociosos ao mesmo tempo.

A preguiça, o orgulho exagerado, a ambição.

Defeitos que esses dois homens têm, são feios, mas são aceitáveis.

Dois jovens indiscretos, bisbilhoteiros, preguiçosos

E ambiciosos são como qualquer adolescentes e são compreensíveis.

Adolescentes bestas.

No lado oposto estão defeitos piores.

O egoísmo e a depressão.

O egoísmo é magro, cego e velho.

Ele vem com uma bengala batendo em tudo, incômodo e presente.

Ele é ranzinza, chato, exigente.

Ele é o egoísmo.

Ele sabe esbravejar toda sorte de coisas desagradáveis só para ferir os outros

– velho estúpido, sozinho, egoísta.

A depressão é uma velha gorda.

Muito velha mesmo e tão gorda, mas tão gorda

Que deve ter uns 130 quilos.

Ela é amiga, de cabelos negros.

Ela só sabe olhar o vazio. Não vê nada nem ninguém.

Só algumas coisas que ela se digna de perceber quando desvia os olhos.

Inteligente e com um lindo olhar, ela comove a todos e quer prender todos à sua volta.

A depressão toma conta do ambiente onde está.

Ela só espalha dor e tristeza para qualquer um.

Faz da pena que ela desperta nas pessoas um veneno.

Negativa ao extremo. Seca e gorda.

Mas no centro de tudo existe o que há de pior.

Se na E é tudo aceitável e na D são coisas ruins mas conhecidas,

No C está o pior.

Desconhecido, forte e ameaçador.

Uma besta, uma fera, acorrentada ao pescoço.

Peludo e com cara de bob, ele possui asas de morcego.

Pés e mãos com garras.

É um monstro horroroso.

No início era sensível e frágil ao extremo, porém cada coisa que aconteceu

O transformou naquilo.

Não havia volta, nem cura. A fera queria matar, não pensava nem se arrependia. Não se cansava, precisava se vingar e destruir.

Era a arma que os outros 4 se utilizavam para atingirem seus objetivos.

Era a fúria.

 

Maria pode separar seus elementos confusos, agrupando-os, criando uma forma e dando-lhes um sentido, podendo clarear e discernir alguns conteúdos seus. No decorrer de seu processo terapêutico, cada imagem que surgiu foi trabalhada posteriormente.

A tarefa de separar sementes é milenar, está presente em mitos e contos. No conto russo, a “Bela Vasalisa”, Baba Yaga dá como tarefa à Vassalisa separar quatro substâncias, o milho mofado do milho são, e selecionar as sementes de papoula de um monte de estrume. Essa tarefa equivale à tarefa psíquica de aprender a discriminar, separar as coisas umas das outras com o melhor discernimento e aprender a fazer distinções sutis.

Em “Cinderela”, conto de Grimm, observa-se o mesmo. A tarefa de separar sementes e proposta pela madrasta de Cinderela, quando esta solicita ir ao baile. Por duas vezes, um tacho cheio de lentilhas é derramado sobre as cinzas do fogão para que Cinderela as cate, separando as boas das ruins. Com a ajuda dos pássaros, ela consegue realizar sua tarefa a tempo. O discernimento é o primeiro passo de Cinderela rumo à individuação.

No mito “Eros e Psique”, Afrodite dá à Psique a tarefa de separar sementes. A primeira tarefa de Psique é separar uma montanha de sementes por espécie, durante o período de uma noite. Psique acha impossível cumprir esta tarefa, mas formigas lhe ajudam, e as sementes são separadas. “Esta tarefa representa o início da busca, quando os complexos inconscientes misturados, nos confundem e parecem se constituir numa montanha indecifrável e intransponível”.(6)

Cada complexo desses, como semente, é uma possibilidade de elaboração e crescimento. Aprendendo a selecionar sementes, melhora-se a capacidade seletiva. Tarefas, quaisquer que sejam, podem ser cumpridas mais facilmente com simples ordenamento. Trata-se de saber como diferenciar e como selecionar criativamente.

Ainda sobre a questão do discernimento e da separação, encontramos na Bíblia Sagrada a passagem de separar o joio do trigo, Jesus propôs-lhe outra parábola:

O reinos dos céus é semelhante a um homem que semeou boas sementes no seu campo. Enquanto todos dormiam, veio seu inimigo e semeou o joio no meio do trigo e foi-se embora. Quando milho cresceu e começou a granar, apareceu também o joio. Os servos do proprietário foram procurá-lo e lhe disseram: “Senhor, não semeaste boa semente em teu campo? Como então está cheio de joio?”. Ao que este respondeu: “Foi um inimigo que fez isso!”. Perguntaram-lhe então: “Queres então que os arranquemos?”. Ele respondeu: “Não, para não acontecer que, ao arrancar o joio, com ele arranqueis também o trigo, deixa-os  crescer juntos até a colheita. No tempo da colheita, direi aos ceifeiros: arrancai primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado; Quanto ao trigo, recolhei-o no meu celeiro”. (7)

Esta parábola enfoca bem a diferença entre só separar e separar para distinguir, para dar sentido. Quando estamos na confusão, temos o impulso de separar passando a espada, cortando tudo, trata-se de uma separatio negativa. Por isso, a parábola sugere o tempo em que joio e trigo crescem juntos, que é o tempo para termos clareza suficiente para fazer o corte, para distinguir isto aqui é joio, isso aqui é trigo. Há um tempo em que estamos identificados com todos esses aspectos e, nesta confusão, podemos cortar tudo, pensando que estamos nos livrando do joio. Simbolicamente o germe do trigo é o germe do ser que eu sou. O joio vai ser transformado pelo fogo, vai ser submetido a uma calcinatio. O trigo é o que de fato deve crescer.

Podemos observar por meio dos contos, dos mitos e do caso clínico o poder existente no separar e discernir; a importância da Separatio no processo de individuação, pois não há individuação sem diferenciação.

Na separatio há a ação de dar forma às coisas, pois, dando forma, podemos diferenciar, tornando visível o que, a princípio, não o é. Portanto, a criatividade é chamada à jornada. Dando lugar à criatividade, trazendo a capacidade de dar forma, e formar é organizar. Não ´s só separar, é nomear, é categorizar, é diferenciar, dar um sentido. Perceber o que sou eu e o que é do outro. Clarear que aspectos são esses em mim. Sair da confusão.

Separar para discernir é um separar positivo. O discernimento supõe um ver com clareza.

Como diz Jean Yves Leloup (2009),

Antes de tudo, peça a Deus que lhe dê discernimento. É a origem de todos os bens. Lembre-se da oração de Salomão: ele não pediu nem riquezas, nem grandezas, mas sabedoria, um coração inteligente para discernir o que é bom e todos o resto lhe foi dados em acréscimo.

 

 

 

Referências

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EDINGER, Edward. Ego e Arquétipo: uma síntese fascinante dos conceitos psicológicos fundamentais de Jung. São Paulo: Cultrix, 1992.

EDINGER, Edward F. Anatomia da Psique: o Simbolismo Alquímico na Psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 1992.

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GRIMM, Jacob e Wilhem. Contos de Fadas (Obras completas). Belo Horizonte: Villa Rica, 1994.

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——————–, Misterium Conunctionis – Obras Completas, Vol XIV/2. RJ, Petróplis: Vozes, 1990.

——————–, O Eu e o Inconsciente  – Obras Completas, Vol VIII. RJ, Petróplis: Vozes, 1988.

——————–, Psicologia e Alquimia  – Obras Completas, Vol XI I. RJ, Petróplis: Vozes, 1994.

MAGMO, Alberto. Iniciação à Alquimia:  Rio de Janeiro: Nova Era, 2000.

RIBEIRO, Maria de Lourdes Campos. Terra – Planeta Água: o simbolismo das águas na Psicologia, Mitologia e alquimia. Resumo da conferência apresentada no 3º Curso Sobre Águas Minerais, em Poços de Caldas – MG.

NISE, Silveira. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.

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VON FRANZ, Marie-Louise. Alquimia: Introdução ao simbolismo e à Psicologia. São Paulo: Cultrix, 19

Héstia

Presença, silêncio e espiritualidade

Lígia Diniz

Monica Valéira Iaromiila

 

 

Resumo:

                Apresentamos a Deusa Héstia, senhora do fogo sagrado, enfatizando sua importância enquanto arquétipo da quietude e da sabedoria contemplativa, no processo de individuação.

                Sugerimos vivências arteterapêuticas que ativam est arquétipo. Héstia é o espaço silencioso, do centro da psique, na jornada de autoconhecimento.

                A arte se dá no espaço de silêncio vazio, território conhecido e acolhido por esta Deusa. Ativando-a, percebemo-nos como um templo, onde encontramos nossa própria fote de luz e calor.

Palavras-chave: Fogo Sagrado – Meditação – Espiritualidade – silêncio – Vazio – Criatividade – Presença – Arte.

 

                Abstract:

                This paper presentes Hestia, goddess of the sacred fire. It describes this archetype of stillness and contemplative wisdom importance in the individuation process.

                There are art therapeutic activities suggestions that may activate this archetype. Hestia is the silente space, of the psyche core, in the journey of self-knowledge.

                Art takes place in silence and empty sace, territory known and welcomed by this goddess – activating it, we perceive ourselves as a temple, where we find our own source of lght and warmth.

                Keywords: Sacred Fire – Meditation – Spirituality – Silence – Empty – Creativity – Presence – Arte.

 

                Resumen:

                El objetivo de este trabajo es presentar la diosa Hestia, señora del fuego sagrado, y mostrar su importância como arquetico de la quietude y la sabiduría contemplativa, em el processo de individuaci´n.

                Hasta exemplos de talleres arteterapeticos que intentan activar esse arquétipo. Hestia es el espacio de silencio, el centro de la psique, em la viaje de conocimento de si mismo.

                El arte tiene lugar em el silencio y el vacío, território conocido y acogito por esta diosa – por activarlo, percibimos a nosotros mismos como um templo, donde nos encontramos com nuestra propia fuente de luz y calor.

                Palabras-clave: Sacred Fire – Meditación – Espiritualidad – Silencio – Vacío – Creatividad – Presencia – Arte.

 

 

 

 

 

HÉSTIA

Presença, silêncio e espiritualidade

 

Falar

Ferreira Gullar

A poesia é, de fato, o fruto

de um silêncio que sou eu, sois vós,

por isso tenho que baixar a voz

porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade,

fala ao revés da fala,

como um silêncio que o poeta exuma

do pó, a voz que jaz embaixo

do falar e no falar se cala.

Por isso o poeta tem que falar baixo

baixo quase sem fala em suma

mesmo que não se ouça coisa alguma.

 

A Psicologia Analítica propõe a utilização dos mitos, das lendas e dos contos de fada como pontes para acesso aos conteúdos inconscientes. Da mesma forma, a Arteterapia tem na mitologia uma fonte de constante estudo e pesquisa por onde podemos perscrutar padrões arquetípicos atuantes em nossa psique.

Segundo Jung, os arquétipos são padrões de comportamento instintivo contidos no inconsciente coletivo universal. Poderiam ser descritos como um agrupamento definido de caráter arcaico que encerra motivos mitológicos em forma e significado – surgem em mitos, lendas, contos de fada e nos sonhos.

Ao estudarmos e vivenciarmos as deusas gregas, estamos diante desses padrões que nos permitem uma visualização de nossas dinâmicas e polaridades, bem como o poder transformador de tais energias que nos habitam e são potenciais a serem ativados em diversos momentos de nossas vidas.

Héstia, como Ártemis e Palas Atena, é uma deusa virgem. As deusas virgens representam a qualidade de independência e autossuficiência das mulheres. Ao contrário das outras deusas olímpicas, essas três não eram suscetíveis de se enamorarem. Como arquétipos, elas expressam a necessidade de autonomia e a capacidade que as mulheres têm de enfocar sua percepção naquilo que é pessoalmente significativo e personificam aspectos independentes e ativos da psicologia feminina.

A deusa grega Héstia representa o fogo central do lar, altar ou da polis – uma lareira circular, mandálica. Estamos, portanto, diante do arquétipo da quietude, podemos pensar no lar como nosso próprio ser, nosso corpo, mente e consciência.  Vivenciar a Deusa Héstia é estar no silêncio de si, diante da centelha divina. O cerne de sua atuação é ela mesma, no sentido de que ela é centrada na paz criativa de seu Ser.

Esta deusa é a primogênita de Réia e Cronos, foi devorada pelo deus, assim como seus irmãos. Héstia foi a última a ser devolvida à luz. Portanto, ela repousou na escuridão das vísceras de seu pai em solitude. Deusa invulnerável, que não teme a solidão, serena, manteve a castidade com a permissão de Zeus.

Héstia se volta para aquilo que é interior, volta-se para experiência subjetiva. Por sua característica de autossuficiência, manteve-se só, em silêncio e êxtase, entre os olímpicos. Ela é cintilante onipresença no lar dos Deuses e dos homens, cerne de religação nas residências. Como fogo sagrado, acompanhava homens e mulheres em todas as fases da vida: nascimento, crescimento, casamento e morte – suas labaredas purificadoras estavam sempre presentes. A lareira de Héstia tinha de existir para uma residência tornar-se um verdadeiro lar.

O foco desta deusa é no que é significativo e intenso – a inteireza e a totalidade – alicerçadas por profundas experiências subjetivas, aquece o coração daquelas que manifestam este arquétipo. Sua presença traz a premência de se estar completa em si mesma, a autossuficiência que não depende da aprovação de quem quer que seja. Há tendência para uma vida monástica, e esta deusa provoca estado de concentração no presente, desde as tarefas cotidianas, bem como a meditação e as outras formas de conexão, como orações, criações de obras de arte, etc. Investidos de sua força, cultivam-se o sossego, apalavra correta no momento correto, a ponderação e a reflexão. As atuações de Héstia são voltadas para os aspectos mais internos da personalidade: automotivadas, seguindo valores próprios. A existência é sagrada, e a pessoa vive a arte de “ser do tamanho que é, nem maior, nem menor”!

Esta deusa conhece o caminho do meio, as alegrias e arguras têm, cada uma, seu lugar, não havendo grandes desequilíbrios diante do que acontece. Esta capacidade de não se identificar com emoções extremas reforça o atributo da sapiência neste arquétipo – permanece ao Todo e permanece tranquila. Em silêncio, é capaz de preparar uma bela refeição para si mesma, presentear-se-á com aquilo que lhe traz sorrisos, deixará o lar cheiroso só para si.

Héstia está em si e ali é seu lar, portanto todo o universo lhe pertence – tanto quanto empenha as tarefas da vida comum, do dia a dia, como quando empenha ritos e atos de profunda sacralidade. Ela nos convida aos encontros com o nosso fogo interno, a lareira central de nosso próprio silêncio e de nosso encontro com a espiritualidade.

 

Sobre o silêncio e a meditação

Cala-te: pela palavra gastamos muita energia e pelo silêncio recolhemos esta energia que nos tornará capazes de dizer “palavras dignas do silêncio”, tão potentes quanto ele. (Gandhi)

 

A Deusa Héstia é silente, promove o silêncio e a palavra essencial. O silêncio é circular como sua representação, que fulgura no centro de nós mesmos, no nosso lar mais verdadeiro.

É no silêncio que podemos ouvir a voz sussurrante do sagrado, e é necessária uma determinação para mantê-lo. O silêncio é fonte e uma das mais poderosas formas de trabalho interior, que nos coloca em contato direto com a graça e com profundos ensinamentos – afinal, toda palavra vem do silêncio e a ele retorna. Uma pessoa em estado de silêncio está fora das amarras do controle que a mente nos impõe todo o tempo. Neste lugar, conhecemos a solitude, espaço sagrado no cerne do Ser – que propicia estado de percepção cristalina. Nesta fonte perene, podemos experienciar contato mais legítimo com tudo que nos cerca.

Jean-Yves Leloup nos ensina a meditar como o oceano, pois, no silêncio das profundezas do mar, distanciadas das espumas e das ondas da superfície, permanecemos tranquilos, em um estado de paz espiritual. “Busca o acolhimento de um silêncio e uma paz que não são deste mundo e que, no entanto, podem ser não somente pressentidos, mas vividos neste espaço-tempo.”

Meditar é esvaziar-se do conhecido, abrir seus limites, sem perder nossos encontros – não ter medo de estar aberto a este espaço novo. Deixar ser o que é. Respirar a Presença. Ir “ao infinito âmago de nossa finitude”.

Nesta ampliação, vislumbramos a fonte de onde tudo brota e para onde vai todo verbo advindo da essência, estabelecemos uma ponte, comunicando-nos com a fala essencial do coração. A meditação que nos leva a um foco no presente e na presença, possibilita o centramento no que é fundamental, na pura luz. Héstia pode ser esse acesso à meditação e às percepções mais profundas, que surgem quando estamos em contato e intimidade com o próprio Ser.

Os pensamentos vão e vêm, provocam em nós a espuma, mas o fundo permanece imóvel. Meditar a partir das ondas que nós somos para perder e fixar raízes no fundo do oceano. (Leloup)

 

 

 

Vivenciando Héstia

Quando muitos fazem silêncio juntos, nasce um espaço de tranquilidade que todos vivenciam como benfazejo. Sentem-se envolvidos pelo silêncio comum como um manto protetor e curativo. (Grün)

 

Começamos pela meditação como o fogo: os participantes estão em roda e acende-se um pequeno fogo no centro do círculo – á então o convite para um momento contemplativo e silencioso, cujo objetivo é trazer centramento e a quietude da Deusa à roda.

“O fogo sagrado de Héstia transforma uma casa em um lar, e uma construção em um templo.”

(Jean (Shinoda)

                E silêncio, os participantes são convidados a sentirem seu corpo como um templo, onde em seu interior uma fonte de luz e calor aquece e brilha, como uma lareira da deusa. Cada um entra em contato com esse fogo interno. Inspirando e expirando tranquilamente, sentindo essa luz se espalhar por todo o corpo. E nesse silêncio, paz e quietude, podemos sentir Héstia.

Após a meditação, cada participante será convidado a fazer sua lareira, alusão ao fogo interno que nos conecta com a chama divina. São disponibilizados tijolinhos de argila para cada pessoa, com massa corrida e velas brancas cortadas ao meio. A deusa Héstia é a inspiração enquanto a lareira é cuidadosamente moldada. Depois de construir sua lareira, cada qual com seu estilo, velas serão acesas no interior de cada uma delas – o objetivo é que a luz e a presença deste arquétipo do silêncio e da quietude seja vivenciado. Sugere-se que cada qual coloque sua lareira no centro do espaço no qual a vivência é realizada, para unir-se a chama, formando uma luz coletiva.

Após a atividade da lareira e já de posse de eu “fogo”, propõe-se que cada qual, por meio de uma nova meditação, entre em contato com o seu silêncio.

“Oferecer um espaço de silêncio e solidão onde o ser humano pode encontrar a sua verdadeira natureza não condicionada, não artificial….” (Leloup)

Convocamos os participantes a uma meditação buscando o espaço do silêncio, são convidados a levar sua atenção para o seu mundo interior, respirando tranquilamente, de olhos fechados, olhando para dentro, aquietando suas emoções, esvaziando a mente dos ruídos; dos ruídos dos outros e dos seus próprios ruídos, encontrando esse ponto d quietude interior, inspirando paz, expirando paz, deixando que o próprio Ser medite em você. No silêncio da Presença, experimentamos Héstia.

Depois deste momento contemplativo, cada qual recebe: CD (sucata), várias velas coloridas e uma vela réchaud.

Então, as pessoas são convidadas a acender as velas coloridas e deixá-las derreter, cobrindo o CD. A vela réchaud acesa é acesa no centro dela; faz-se um mandala individual, alusão à totalidade e à circularidade; propõe-se também um grande mandala coletivo.

A palavra mandala vem do sânscrito e significa “círculo mágico”, sendo compreendida como uma expressão da Totalidade, do Self. Como afirma Jung: “o mandala evoca nossa relação com o infinito, com o mundo que se estende, ao mesmo tempo, para além de nós e para o interior de nosso corpo e de nosso espírito”.

Como símbolo de completude, o mandala oferece uma sensação de paz interior e de reconciliação, dando ordem ao caos. Uma das representações da Deusa Héstia é o círculo, sem começo nem fim – que vibra, da mesma forma, inteireza. Propõe-se a vivência do arquétipo de Héstia, convidando as pessoas a visitarem, por meio da arte e do silêncio meditativo, o cerne de si. Portanto, esta é uma proposta de experimentação da dimensão do Si mesmo.

Encerramos a vivência lendo a poesia “Solidão”, de Paulo Cesar Pinheiro, com uma música suave tocando ao fundo.

 

Solidão

Paulo César Pinheiro

 

Eu sozinho sou mais forte
Minh’alma mais atrevida
Não fujo nunca da vida
Nem tenho medo da morte

Eu sozinho de verdade
Encontro em mim minha essência
Não faço caso de ausência
E nem me incomoda a saudade

Eu sozinho em estado bruto
Sou força que principia
Sou gerador de energia
De mim mesmo absoluto

Eu sozinho sou imenso
Não meço nunca o meu passo
Não penso nunca o que faço
E faço tudo o que penso

Eu sozinho sou a Esfinge
Pousado no meio do deserto
Que finge que sabe o que é certo
E sabe que é certo que finge

Eu sozinho sou sereno
E diante da imensidão
De toda essa solidão
O mundo fica pequeno

Eu sozinho em meu caminho
Sou eu, sou todos, sou tudo
E isso sem ter contudo
Jamais ficado sozinho

 

Finalizando….

                               “A Arte pode, portanto, nos despertar ao infinito que existe em nós”. (Leloup)

 

Utilizando-se a arte, a Arteterapia promove o aparecimento e a conscientização da criatividade. Criatividade e autoconhecimento estão intimamente relacionados. Sabemos que a criação só acontece a partir de espaços vazios.

É no vazio que nossa subjetividade se desenvolve. E podemos ser quem realmente somos.

Héstia não teme o vazio, antes, ela o conhece e acolhe. No silêncio do ser, encontra-se a paz com o vazio. Este lugar de quietude nos permite ouvir o som essencial, por estarmos distanciados de nossos ruídos e, também, dos ruídos de outrem.

Nesta abertura aos espaços recônditos de nós mesmos, travamos as melhores conversações internas, ampliamos nossa visão sobre nós mesmos e sobre o mundo que nos cerca.

O espaço sagrado, onde nosso fogo interior sempre fulgura, que todos possuímos e podemos acessar é o território onde o silêncio preenche cada experiencia de sentido, onde residem muitas respostas – acesso à quietude interior, onde tornamo-nos quem somos é possível.

O arquétipo de Héstia aponta para o silêncio e a solidão profundamente nutritivos, conduzindo-nos ao equilíbrio interior e, assim, nos guiando em direção a nós mesmos, neste percurso de nossa individuação.

Jung chamou de individuação a busca de realização de potencialidades inatas ao ser humano. Todos nós possuímos a centelha para a concretização do que existe em nós, um contínuo contemplar-se. Sob os auspícios de Héstia, esse processo é realizado em embalos silenciosos e contínuos.

Héstia, deusa da sabedoria contemplativa. Nos revela que cada um de nós é um caminho, iluminado pela luz de nossa lareira interior.

Como dia Jean-Yves Leloup,

“cada um de nós é um caminho único, o caminho tomado pelo Amor para iluminar o mundo. Cada um de nós é uma forma única, particular, que a Vida toma para iluminar a terra”.

 

 

Referências

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BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume 1. Petrópolis: Vozes, 1987.

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MARASHINSKY, Amy Sophia. O oráculo da Deusa. São Paulo: Pensamento, 1997.

MCLEAN, Adam. A Deusa Tríplice – em busca do feminino arquetípico. São Paulo: Pensamento, 2009.

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Sobre a Drª Lígia Diniz

Bacharel em Psicologia pela Universidade Santa Úrsula. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Possui Pós-Graduação em Psicologia Junguiana pelo IBMR, tendo ainda formação em Análise Transacional; Biodança e Terapia de Casal. Analista Junguiana. Membro didata do IJRJ (Instituto Junguiano do Rio de Janeiro) e membro da IAAP (Institucional Association for Analytical Psycology). Arteterapeuta pela Clínica Pomar. Membro fundador da AARJ – Associação de Arteterapeutas do Rio de Janeiro, fazendo parte também do Conselho Diretor da UBAAT – União Brasileira de Associações de Arteterapia. Coordenadora do Curso de formação em Arteterapia desde 1997. Atua na área clínica como Analista Junguiana e Arteterapeuta.